João Antônio de Bezerra Neto chega com “De buriti ao sangue”, pela Sol Negro

Reportagens

3 livros de autores potiguares lançados (ou escritos) na pandemia

Uma biografia, um romance e um livro de poesia para um leitor ainda enclausurado

04 de outubro de 2020

por Alexandre Alves

Ao contrário dos inquietos músicos potiguares – muitos deles resenhados neste site cultural –, a literatura feita nas terras potiguares passa em 2020 por uma estagnação nunca antes vista (assim como uma pandemia de alcance mundial que já chegou ao seu primeiro milhão de mortos oficiais). Obviamente, com as escassas livrarias potiguares e sebos limitados em seus já poucos metros a quem se arrisca encontrar um vírus voando pelo mundo, a atividade literária se ressente de uma figura vital: seu leitor, seja ele o que vai ao lançamento ou aos que iriam aos atuais proibidíssimos festivais literários, cuja aglomeração – tímida ou não – fazia agrupar os admiradores da leitura.

Para o renomado crítico Antonio Candido, a literatura como sistema só existe se houver escritor, obra e leitor. Como o último da cadeia literária – sem trocadilhos – está recluso em suas casas ou enfrentando a contragosto transitar para o trabalho, o ofício com a literatura perde uma de suas bases. Alguns poucos autores potiguares conseguiram publicar obras que já estavam prontas ou prestes a serem publicadas. De três tipologias distintas, eis aqui três exemplos da sobrevivente literatura local em meio à pandemia de 2020. Viver ainda é preciso (e ler também).

 

1. MANOEL ONOFRE JÚNIOR – “Antonio de Souza (Polycarpo Feitosa): uma biografia” (260 páginas, Editora 8)

O experiente ensaísta – autor do essencial “Ficcionistas potiguares”, por exemplo – aqui tenta elucidar um pouco mais da vida do escritor que ficou renomado pelo pseudônimo de Polycarpo Feitosa, indo além da simples biografia, anexando cartas, capas de livros e até uma mini antologia dos textos do autor nascido em Papary (atual Nísia Floresta). O prosador e poeta Antonio José de Melo e Souza deixou várias obras publicadas em vida, iniciada na literatura com o romance “Flor do sertão” (1927) e marcado com aquele considerado o primeiro romance moderno escrito no Rio Grande do Norte – o urbano “Gizinha” (1930) –, além dos contos de “Encontros do caminho”, gênero pouco explorado entre os potiguares até então.

Com uma exposição narrativa dosada em parágrafos curtos – alguns curtos em excesso e sem tal necessidade –, Onofre Jr. consegue extrair muitas informações nas 14 seções sobre a vida e obra deste autor, que inclusive foi Governador do Rio Grande do Norte entre os anos de 1906 e 1908, e entre 1920 e 1924. Falta agora uma reedição dos livros de Feitosa, há algum tempo fora do mercado, para deixar o leitor mais próximo da obra literária do criador de “Alma bravia” e outras publicações em meio a um período ainda pouco estudado pela crítica literária (as décadas de 1930 e 1940).

2. DAVID DE MEDEIROS LEITE – “2020” (234 páginas, Sarau das Letras)

Em terra conhecida por sua quantidade de poetas – mas não confundam números e qualidade –, o também poeta e cronista mossoroense se lança em seu primeiro romance, simbolicamente intitulado com este trágico ano (segundo declaração do próprio autor, o livro já estava pronto com seu título ainda antes da pandemia se espalhar pelo planeta). No bem traçado enredo, a narrativa composta a partir do foco em primeira pessoa dá um tom – se não intimista – bastante próximo aos acontecimentos, motivado por uma espécie de obsessão memorial.

O narrador protagonista José Dirceu Silvestre de Araújo conta sobre sua experiência religiosa no Convento do Carmo (em Recife) e um persecutório sonho – o personagem o chama de “grande dilema onírico” – sobre uma botija escondida por um dos representantes da ordem carmelita e que estaria na região de Mossoró. Eis aqui a razão para o enredo em si, entrecortado por personagens como Câmara Cascudo (este já surgindo no capitulo de abertura), com a trama indo de 1958 até chegar em 2020. Nos 20 capítulos do romance, a elegante narrativa de David Leite persegue por capítulos curtos e pouca presença dos diálogos, fazendo o leitor prestar atenção na fala indagatória do narrador protagonista e sua meta ficção: publicar um livro com a estória aqui tratada.

3. JOÃO ANTONIO BEZERRA NETO – “Do buriti ao sangue” (50 páginas, Sol Negro)

Estreando no gênero milenar da poesia, o desterritorializado autor apresenta os 26 poemas que integram seu début. Já conhecido por estudos críticos sobre o ainda injustamente obscuro poeta potiguar Walflan de Queiróz, o jovem João Antonio nasceu no Ceará, cresceu no Maranhão e mora em Natal há vários anos. Esta rota biográfica explica um pouco sua poesia encravada entre verso livre e poesia em prosa, com o conjunto de textos aqui trazido talvez sendo compreendido como um único longo poema dividido em partes, separados nas páginas por algarismos romanos.

Na poesia do estreante, os versos ora flutuam pela página num exercício pós-concreto (poemas I/III/V) ora estão numa extensão longa ou curta, ou seja, o poeta ajusta seu poema na página de várias formas. Na representação vocabular, cruzam-se várias tendências na representação da natureza e do ser humano, como certo espírito neossimbolista presente no onírico poema de abertura (dos horizontes / de zinco / nuvens são braços mutilados), ou que termina com imagens fortes à la Roberto Piva, caso do “Poema III” (vi cruzes invertidas/ incendiadas / na boca / de anjos degolados). Aqui e ali, um haicai tropicalizado dá o tom lírico, a exemplo do “Poema XI” versando sobre a natureza (O murmúrio das palmeiras/ e a rosa nascida agora/ nas sombras da aurora) ou sobre o contraste entre a cidade e o lado natural, como no “Poema XII” (Esqueço a cidade durante dias. / Sombras do buriti e meu sangue. / Pedras nas trevas consolam tristes espíritos).

Isto é, o caso aqui é de uma lírica de múltiplas facetas, no estilo contemporâneo de ser, apesar do hermetismo de certas passagens. Chama a atenção também a categoria gráfica da pequena e valiosa Editora Sol Negro, caprichando no design livresco da já milenar arte poética. Enquanto isso, muitos arremessam seus versos nos blogs da vida à procura das curtidas virtuais.