O RETÁBULO: O dourado do altar-mor é uma verdadeira “cachoeira de ouro”
Colunas
Catedral de Sevilha: 'Vamos fazer uma igreja tão bela e tão magnífica que, aqueles que a virem pensarão que foi construída por loucos', disseram
02 de junho de 2022
Clotilde Tavares
Eu não sou muito de viajar. Quando era mais jovem, não tinha tempo, nem grana; hoje não tenho vontade porque estou interessada em outras coisas que me pregam na poltrona e no computador, além de exigirem silêncio, sossego, tranquilidade e tempo independente daquele que vai sendo marcado pelo relógio. Viajar é uma coisa que normalmente me cansa, mas eu adoro os monumentos. Igrejas, palácios, mosteiros, e tudo quando é construção que tenha mais de 500 anos. Vê-los é viver a vida que neles se acumulou ao longo dos séculos. É ouvir as vozes que ali vibraram. O resto – avião, hotel, andar a pé, a comida, estar fora da minha casa – é tudo tão insuportável! Então tenho preferido as viagens interiores, desbravando o país da Filosofia e da Imaginação, nos quais me sinto muito confortável e sempre surpresa com as coisas que encontro por lá.
Mas vez por outra eu me sacudo “para desprender o pó das horas”, como diz a poeta Diva Cunha. Nessas ocasiões, cada vez mais raras, saio por aí, determinada como uma formiga operária, com um mapa na mão e todas os comprovantes de reservas, traslados e passagens na bolsa, e uma certa dose de estresse porque, definitivamente, não tenho espírito aventureiro.
Foi assim que fui parar na Espanha, na região da Andaluzia, pontilhada de cidades cheias de tradição, com seus palácios, templos, monumentos e tesouros que extrapolam qualquer descrição ou relato, sobretudo num espaço limitado como este. Sevilha (a maior da região, com cerca de 1 milhão e 300 mil habitantes), Córdoba, Granada e Málaga são as principais. Um dado cultural interessante é que, no século X, Sevilha e Córdoba eram grandes e desenvolvidas cidades, mais importantes na época do que Paris e Londres, por exemplo. A coexistência pacífica de três culturas diferentes – árabes, cristãos e judeus – levou a região a um fausto e um progresso sem igual.
Essa atração pela Andaluzia também tem a ver com a cidade de Sevilha, que para mim sempre foi o teatro do amor de Manolita e do seu garboso Pedro, o toreador.
“Era uma tarde em Sevilha, quando uma dama, formosa eu vi...”
Tia Adiza cantava essa canção quando eu era criança e despertava no meu cérebro inocente o mecanismo do desejo e da imaginação, que transformaria Sevilha para sempre na minha mente em um lugar de amores, traição, touradas e magia.
As palavras são minha paixão, e fui em busca delas. “Palavras, palavras, palavras.” (Hamlet, Ato II, Cena 2) Palavras mágicas, misteriosas, arrebatadoras, que escondiam seu significado pleno. Alcázar, tauromaquia, moçárabe, mudéjar, Almodóvar, buena dicha, andaluz, Guadalquivir, mouraria, sefardita... Eu queria ver, tocar essas palavras, fazê-las se revelarem diante de mim.
Então lá fui eu turistar, e algo que sempre me deixa perplexa é quando vejo aquele monte de gente fazendo turismo, entrando e saindo daqueles lugares maravilhosos sem saber o que são, porque foram erguidas aquelas torres, quem morou naqueles palácios e de onde veio a grana para construí-los e decorá-los, e o que aconteceu naquela praça agradável onde a gente se senta para tomar um refrigerante e comer uns “tapas”. Talvez esse desconhecimento seja até bom, para não fazer como eu, que descobri que aquela praça era o local onde há quinhentos anos a Inquisição realizava os seus “autos de fé”, ou seja, queimava bruxas e hereges. Quando, em rápida consulta ao Google, descobri isso, o lanche perdeu o gosto, a garganta travou e me vi envolta pela fumaça acre, pelos gritos dos supliciados e pelo cheiro terrível de carne queimada. Abandonei o local e entrei no starbuck próximo, que me transferiu em segundos para o abençoado século XXI, no qual teoricamente não se queima mais gente no meio da rua. Aí lembrei do que a polícia faz de vez em quando e, para não ficar infeliz, deslembrei, tomando a decisão de, em viagem, não me deixar levar excessivamente pela imaginação.
Em Sevilha tem coisa demais para ver. A criatura passa um ano lá e não é suficiente. As cidades da Andaluzia são literalmente repletas de tesouros – artísticos, arquitetônicos, arqueológicos – mas Sevilha tem algo que nenhuma tem: a imensa catedral. É a maior catedral gótica do mundo e a terceira maior em qualquer estilo, depois de São Pedro (no Vaticano) e Saint Paul (em Londres). Sua construção começou em 1401, depois da reconquista de Sevilha pelos cristãos, e terminou em 1506. Diz-se que quando os planos foram elaborados, os anciãos da igreja afirmaram: "Vamos fazer uma igreja tão bela e tão magnífica que, aqueles que a virem depois de pronta, pensarão que foi construída por loucos.” Dois milhões de turistas a visitaram em 2017 e eu fui uma dessas pessoas.
Tem 37 metros de altura, 80 capelas laterais (cada uma praticamente do tamanho de uma das nossas igrejas), mais de 600 obras de arte de alto valor, um tesouro em joias (custódias, coroas, cálices ricamente trabalhados, incrustrados de pedras preciosas), imagens em prata dourada maiores do que eu e você, tudo isso sem contar o mobiliário, o coro, o gigantesco órgão, as esculturas e o próprio templo em si, um primor de harmonia entre os imensos volumes das colunas e abóbadas e o espaço ali contido, iluminado pelos vitrais. A torre onde ficam os sinos é praticamente a única parte que restou da mesquita muçulmana que havia no local, e que foi arrasada depois que o rei Fernando III tomou a cidade dos mouros em 1248; tem 96 metros de altura incluindo o catavento no alto e a subida é possível através de uma sequência de 35 rampas, em vez de degraus – porque o sultão gostava de ir até lá em cima contemplar a sua cidade, mas queria ir a cavalo!
Se você calcular três metros por andar de um prédio desses comuns nos quais moramos, facilmente fará as comparações. Só para lhe ajudar: 96 metros de altura correspondem a um prédio de 32 andares.
Mas o que existe de mais bonito em Sevilha, e dentro da catedral, é o famoso retábulo dourado do altar-mor, uma verdadeira “cachoeira de ouro”. Para quem não sabe, um retábulo é uma construção geralmente em madeira entalhada, que pode ou não ser coberta por ouro e que se divide por linhas verticais e horizontais em “quadros” onde estão colocadas imagens em alto relevo ou pinturas representando a vida de Jesus ou episódios sagrados. Podem ser simples, por exemplo, com duas linhas na horizontal e duas na vertical delimitando nove quadros; ou pode ser esse exagero de beleza e ostentação como este do qual estamos tratando. Afinal, havia que dar destino às quantidades absurdas de ouro e prata que os galeões espanhóis traziam do Novo Mundo, às custas da exploração dos povos ancestrais latino-americanos.
O retábulo da capela-mor da catedral de Sevilha é o maior da cristandade. É o maior e mais rico altar do mundo e um dos melhores exemplos de esculturas góticas em qualquer lugar. Ostenta 44 quadros, ou cenas religiosas, e tem quase 30 metros de altura – você já fez a conta, e sabe que é da altura de um edifício de 10 andares – e 20 metros de largura.
Então, de posse de todos esses números, eu me preparei para ver a maravilha. Já de ingresso comprado pela internet, acordei cedo, embora soubesse que a visita só se iniciaria as 11 da manhã, com entrada pela Porta do Príncipe – a maior das quatro principais portas que a catedral tem, uma em cada uma de suas faces, pois é uma construção quadrada. Oito horas da manhã e eu já de pé, inquieta. Não aguentei esperar no hotel e fui me sentar em um pequeno café em frente a outra das portas da Catedral, a Porta da Assunção que, incluindo sua arcada e decoração, tem aí seus 10, 12 metros de altura. Fiquei ali, vendo o povo passar, fazendo hora, quando vi abrir na portona grande uma portinha, que só dava para passar uma pessoa de cada vez. Atravessei a rua e me aproximei. Tomando conta da porta tinha um senhor, que eu cumprimentei com um aceno de cabeça. Ele perguntou: - Veio para a missa? E eu respondi que sim. Ele afastou-se e eu entrei.
Aqui é preciso um esclarecimento. Eu não ando vestida de turista. Não uso o uniforme de quem viaja: tênis, bermuda, blusinha, chapéu e pochete. Ando em qualquer lugar do mesmo jeitinho que ando aqui em Natal, com meus vestidos compridos ou de calça e blusa, sapato ou sandália, e com minhas bolsas grandes. O camarada lá da portinha olhou para mim e achou que eu era uma local, que tinha vindo assistir à missa. E me deixou entrar.
Lá dentro, uma penumbra, uma escuridão que se elevava aos céus. Aos poucos, fui distinguindo as altíssimas colunas, e uma luz ao longe, de onde vinha uma voz: era a missa, e tinha começado naquela hora. Aproximei-me e me sentei ao lado dos fiéis, em um dos bancos, enquanto tentava me acalmar pois tudo tinha acontecido muito rápido. Ao meu lado, todos estavam concentrados e ninguém me prestava atenção.
Fui criada em colégio de freiras e ao ouvir o ritmo da celebração, os sons familiares, o cheiro do incenso fortemente sacudido no turíbulo pelo coroinha, tudo isso foi me trazendo recordações da infância, e fui ficando muito emocionada. Fixei o olhar no sacerdote e comecei a perceber um brilho intenso que havia atrás dele, como um resplendor, uma fogueira, um incêndio de chamas, que aqueciam o meu olhar e espantavam a escuridão. Era o Retábulo. Eu estava assistindo a missa celebrada diariamente para a população local no altar mor da Catedral de Sevilha, diante daquela cachoeira de ouro de altura descomunal, mais brilhante e incandescente ainda porque toda a imensa construção estava às escuras.
Naquela hora, fui tomada por uma emoção que até hoje não sei explicar – estética, espiritual, transcendental, ou o que seja, e mergulhei em um estado ampliado de consciência como há muito não experimentava. Depois do ofertório, quando o sacerdote preparava a consagração da hóstia e a elevação, eu já completamente transportada, os anjos começaram a cantar e pensei que tinha morrido e estava no céu, embora não acredite racionalmente em nada disso. Não eram os anjos, mas uma dúzia de padres com suas vestes rituais cantando, acompanhados pelo impressionante órgão que fica por trás de onde estávamos sentados.
E então tudo se desenrolou muito rápido. Quando o padre chamou para a comunhão eu estava tão fora de mim que me esqueci que sou ateia, que fazia 60 anos que não comungava, e que estava cheia de pecados mortais e cabeludos. Levantei-me, e fui até a mesa da comunhão junto com aquela gente, onde tomei da hóstia e a coloquei na boca. Quando voltei, sentada no banco, sentindo a aspereza do disco de pão sobre a língua, fui voltando ao normal. E ao acabar a cerimônia, eu já estava sendo de novo a velha e filosófica Clotilde, imaginando que havia acabado de receber Jesus, e imaginando também como estaria sendo esse encontro da divindade com minha essência marxista. Considerei também que não era sábia o suficiente para entender esses mistérios. Deixei tudo por conta do doce Jesus e do velho Marx, e saí logo da igreja acompanhando os fiéis para arrodear a construção e entrar de novo, dessa vez pela porta correta, com o rebanho de turistas, para olhar tudo, no claro, com detalhes e sem interferências místicas.
E esse dia 24 de maio de 2017 passou a ser, no meu calendário, o dia em que comunguei em pecado mortal, sob uma cachoeira de ouro.
.Links para saber mais sobre a Catedral de Sevilha e sobre “a cachoeira de ouro”
Catedral, Alcázar e Archivo de Indias em Sevilha - Centro do Patrimônio Mundial da UNESCO
IMBROISI, Margaret; MARTINS, Simone. Catedral de Sevilha. História das Artes, 2022.
O Retábulo, com imagem em 360 graus
Contatos: http://linktr.ee/ClotildeTavares | clotilde.sc.tavares@gmail.com
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