Beechwood, o palacete de Mrs. Astor, que tinha uma definição peculiar sobre riqueza

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A CARA DA RIQUEZA

Se for atrás da história oculta da maioria dessas coisas que hoje nos encantam, é inevitável encontrar as várias formas de exploração

30 de junho de 2022

Clotilde Tavares

No dia 1º de junho deste ano foi inaugurado em Lisboa o Museu do Tesouro Real no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa. Fui olhar na internet porque, como a maioria das pessoas, sou fascinada por joias. Gemas e metais raros e preciosos fascinam a humanidade desde os primórdios e eu não escapo à regra. Sempre gostei de me enfeitar, gosto mais de ouro do que de prata e na impossibilidade de acumular o que é precioso e caro, me abarroto de bijuterias, que são baratas, mas brilham quase do mesmo jeito.

Essa exposição das joias da coroa portuguesa é emblemática para nós pois aquelas joias foram feitas com o ouro, a prata e as pedras preciosas do Brasil, arrancadas com sangue, suor e lágrimas das nossas minas e jazidas. Aqui vem o dilema: se for pensar muito nessas coisas não posso mais achar nada bonito porque, se você for atrás da história oculta atrás da maioria dessas coisas que hoje nos encantam, é inevitável encontrar também as várias formas de exploração do ser humano por outro.

Sou consciente disso, mas como sou humana e cheia de defeitos, consigo, a partir de complicadas racionalizações minhas comigo mesma, apaziguar a consciência e me deixar arrebatar pela beleza de um palácio ou uma catedral, e iluminar meus olhos já começando a se apagar com um novo brilho, tomado de empréstimo às preciosidades encarceradas nessas vitrines de segurança máxima. 

Falando em joias e coisas preciosas, me vem à cabeça a questão da riqueza: quem ´rico, como vive, como desfruta dessa riqueza. Muitos dos chamados “influencers”, nos seus perfis do Instagram, exibem os símbolos de riqueza material que enchem os olhos dos deslumbrados: festas descritas em detalhes onde os ditos “ricos” degustam bebidas caras e iguarias, exibindo joias, relógios e artigos de grifes. Mas sabemos também que dá um trabalho danado gravar os vídeos, atualizar diariamente os perfis, cuidar do físico, das roupas, e seja lá o que for tanto que essas pessoas fazem para manter os milhões de likes que as catapultam para a fama e para a grana que vem junto. Ou seja: esse povo trabalha. Não como a maioria, eu sei, mas exerce atividade que não pode deixar de fazer senão a fama escorre pelo ralo, porque a notoriedade adquirida nas redes sociais é tão intensa quanto fugaz, e todo dia é preciso um fato novo, um segredo novo, uma fofoca nova, um relógio de modelo novo e mais caro do que o de ontem, ou o roubo desse mesmo relógio, para manter os seguidores ligados e clicando na mãozinha com o polegar para cima.

Fora das redes sociais, ou pouco assídua nelas, existe outra classe de ricos, mais discretos, mas que não deixam de exibir os símbolos apropriados de riqueza. Vinhos caros, caviar, carrões, viagens, coleções de obras de arte e, se não são celebridades, são amigos delas, o que vem dar na mesma coisa. Amam a pompa e a circunstância, vivem encarapitados nas suas torres de aço e vidro mas, apesar de frequentarem a noite estrelada dos eventos exclusivos, no outro dia de manhã você vê esse povo todo no trampo, embarcando em seus helicópteros ou jatinhos, mas trabalhando, ralando, nos escritórios, consultórios, jornais, empresas, indústrias e outras instâncias da produção de riqueza. Por mais que farreiem à noite, no outro dia lá estão todos eles, ainda um pouquinho ressacados, mas suando – pouco – a camisa no ar-condicionado, com obrigações, agendas, compromissos e reuniões de trabalho. 

Aí eu pergunto: rico trabalha? Será que esses são realmente os ricos? Quem estava certo era Jorginho Guinle, rei dos playboys brasileiros: ser rico é não precisar trabalhar e ele se gabava de nunca ter trabalhado um só dia na sua vida. Foi ele quem disse que “...“nenhum playboy de hoje pode ser meu sucessor. Todos têm um grave defeito: eles trabalham”. Trabalhar no sentido de “comer o pão com o suor do rosto”, cumprir a maldição bíblica como castigo pelo pecado da desobediência, trabalhar para não morrer de fome, e trabalhar é fazer algo que não se quer fazer. Tem até o dito popular que afirma que “quem faz o que gosta não precisa trabalhar”, afirmação discutível porque, se o freguês só gostar de fazer coisas que não gerem renda como, por exemplo, tomar cerveja na praia, vai ser difícil comprar e comer o pão, mesmo que não haja suor no rosto.

Rico que se preza não trabalha. Rico que se preza sequer sabe o que é trabalho. Na primeira temporada da série Downton Abbey (Julian Fellowes, 2010), há uma cena engraçadíssima protagonizada pela Condessa Viúva (Maggie Smith), onde alguém explica a ela que um dos personagens, um advogado, não pode vir tomar chá com ela durante a semana porque trabalha. E ela, com a surpresa de séculos de ascendência nobre e endinheirada, pergunta: - Trabalha? Ele trabalha? Como assim? Não estou entendendo. E alguém, para seu espanto, lhe explica o que significa a palavra.
Imediatamente me lembrei de Caroline Astor, dama da alta sociedade norte-americana na segunda metade do século XIX, que reinava soberana do alto da sua opulenta mansão vitoriana onde passava o verão, em Newport, Rhode Island.

No seu salão de baile, com mais de 600 metros quadrados, havia 833 janelas e espelhos e ser convidado para as recepções de Mrs. Astor em Beechwood – que era o nome da mansão – era quase como ser promovido a santo: significava ser admitido numa classe especial de gente que era diferente dos mortais comuns e, principalmente, para diferenciá-los dos ricos que não eram ricos de verdade.

O conceito de riqueza de Mrs. Astor, que norteava a escolha dos seus eleitos, era simples: ter pelo menos um milhão de dólares (que no final do século XIX era dinheiro) e não ter trabalhado por três gerações, o que quer dizer que além do camarada não trabalhar, seu pai e seu avô também não deveriam ter trabalhado. O escolhido, além de ser ocioso de carteirinha, tinha de ser também ocioso hereditário.

Há uma série no Canal HBO The Gilded Age (Julian Fellowes, 2022) que retrata esse período na cidade de Nova York. É aquele mesmo ambiente retratado no filme A Época da Inocência (Martin Scorsese, 1993), mostrando a formação das grandes fortunas, a chegada dos “novos ricos”, a guerra suja pela ascensão social a qualquer custo numa estrutura construída sobre o preconceito. A série mostra alguns personagens reais, como Ward McAllister, o árbitro indiscutível desse jogo de regras não ditas, mas que não podiam ser violadas. Foi ele quem criou o “400″, o primeiro índice de “colunáveis” dos Estados Unidos. O índice, criado por sugestão da já mencionada Caroline Astor, continha apenas 400 nomes porque – dizem as más línguas – era o número de pessoas que cabiam no salão de baile da mansão Astor, em Beechwood.

Pois é, meu caro leitor.

Futilidade, vaidade, insulto terrível e sem perdão a quem ganha salário mínimo ou nem isso, e está passando fome nesse nosso país de desvalidos, tudo isso é pecado que acabo de cometer quando ocupo seu tempo e este espaço para essa breve digressão sobre os ricos de verdade e os ricos de mentira. Mas sabe quando você está escrevendo a dissertação de mestrado, ou realizando outro trabalho intelectual importante que mobiliza toda a sua mente, seu conhecimento, sua atenção? E chega um dia em que você, criatura humana que tem limites, acorda sabendo que não aguenta mais uma só referência bibliográfica, uma só nota de rodapé? E que, para descansar e não morrer de exaustão, tira uma tarde só para ver vídeos de gatinhos no Youtube? Aqueles vídeos maravilhosos, com os bichanos fazendo gracinhas, rolando pelo chão, brincando, fazendo traquinagens que somente os gatinhos sabem fazer? Uma tarde daquilo e lá está você, com novo vigor, pronto para retomar a luta do trabalho árduo, científico, de responsabilidade. 

Pois esta sou eu. Para manter a sanidade nessa época dura e cruel, com as manchetes batendo na nossa cara como uma tijolada de realidade, milhões passando fome, a inflação em disparada, os paladinos da bondade sendo abatidos a tiros e trucidados na floresta, direitos já conquistados sendo anulados, e ainda tendo que suportar o escárnio dos poderosos e a falta de noção dos idólatras, descanso hoje das manchetes com este papo fútil, para animar esse finalzinho de mês onde todos, ricos, pobres e remediados, consultamos nosso saldo para ver se aguentamos mais um dia e sonhamos – pelo menos eu sonho – com um futuro próximo onde muito trabalho nos espera mas é um bom trabalho, é um trabalho digno, de reconstrução e luta. 



Sobre a exposição das joias da coroa portuguesa - https://www.idealista.pt/news/imobiliario/construcao/2022/06/01/52556-museu-do-tesouro-real-abre-portas-em-lisboa-ha-1-000-joias-a-descobrir 
https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/comunicacao/noticia?i=inauguracao-do-museu-do-tesouro-real

Série Downton Abbey https://www.adorocinema.com/series/serie-9280/ (Julian Fellowes, 2010)

Sobre a Sra. Astor e sua mansão, que ainda existe e pode ser visitada
https://en.wikipedia.org/wiki/Caroline_Schermerhorn_Astor
https://en.wikipedia.org/wiki/Beechwood_(Astor_mansion) 

Série The Gilden Age (Julian Fellowes, 2022)  https://www.adorocinema.com/series/serie-19162/ 

Filme A época da inocência (Martin Scorsese, 1993) https://www.adorocinema.com/filmes/filme-8345/ 

Divirta-se com os gatinhos mais fofos e trelosos do mundo https://youtu.be/khrhmsHaGR8 



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