Clotilde Tavares conta como foram algumas de suas noites de autógrafos
Colunas
Um pouco das aventuras e lampejos do inusitado sobre essa atividade tão solitária que é escrever
01 de setembro de 2022
Clotilde Tavares
Sou uma escritora em tempo integral. Isso quer dizer que eu escrevo de verdade, todo dia. Sempre estou escrevendo algo, como agora, e ao final deste post terei escrito aí entre 700 e 3.000 palavras, dependendo da minha animação com o assunto. A maior parte das coisas que escrevo não se aproveita, e é assim mesmo em qualquer ofício ligado à Arte. Mas é preciso escrever, escrever sempre, para manter a habilidade em forma.
Além de escrever, é preciso ler, ler muito, ler os textos dos outros e comentar, responder às mensagens, administrar o Twitter, o Whatsapp e o Facebook (tenho Instagram, mas não gosto), os grupos de discussão no Whatsapp, o Clube de Leitura, atender aos telefonemas, preparar propostas de cursos e palestras e enviar a quem me pede, escrever roteiros para os episódios no novo podcast que vem por aí, trabalhar nas pesquisas que dão suporte aos temas sobre os quais escrevo, ver filmes, ver séries, ver programas de TV, assistir entrevistas, ouvir podcasts, ouvir música. É preciso também fazer a comida, lavar a louça, limpar o apartamento, resolver as inúmeras coisas da vida prática, ir para fisioterapia e o pilates, conversar com os amigos, recebê-los em casa às vezes, dar atenção à família.
A vida é cheia de coisas, mas escrever, para mim, é a principal delas. Uma das coisas interessantes dessa atividade é a relação com os leitores. Um deles, leitor deste blog, recentemente me perguntou se determinado trecho postado aqui não já havia sido antes publicado em outro lugar. Quando eu disse que sim, que o texto já havia sido publicado, ele disse que se sentia lesado, pois estava lendo o mesmo texto duas vezes. Que não estava querendo “ler matéria requentada”!
Mas minha gente, me diga: eu posso fazer algo além de me divertir com uma coisa dessa? Primeiro porque não tenho intenção de publicar inéditos; depois porque não sou jornalista, não publico “matérias”. Sou uma escritora, uma contadeira de histórias e uma eterna plagiadora de mim mesma. Publico textos, crônicas, artigos, conversa fiada, miolo de quartinha, coisas escritas na hora – como essa de hoje – e também textos que foram publicados nos jornais e se perderam, quando o papel cedeu lugar aos bytes.
Aqui neste blog, atendendo ao convite gentil da editora Cinthia Lopes, escrevo geralmente textos novos, mas isso não me impede de requentar trechos ou crônicas inteiras para cumprir essa minha obrigação semanal com a minha meia dúzia de leitores. Desde o dia 20 de março, quando comecei aqui no Típico Local, já foram 23 textos produzidos especialmente para este espaço. Tem texto novo toda quinta-feira.
Então, voltando ao início, essa minha vida de escritora, que começou a se configurar na década de 1980, tem me levado a muitos eventos e lugares, e também a conhecer gente e fazer amizades. Além disso, vez por outra passo por situações e aventuras inusitadas, e o meu objetivo hoje é contar a vocês algumas delas.
A primeira passou-se em Maceió, cidade onde fui lançar um livro no início dos anos 2000. Recomendada por amigos, recebi o convite para a noite de autógrafos, que seria dentro de um evento promovido pela Prefeitura ou Estado, não me lembro.
Na hora marcada me dirigi para o local, que era uma grande festa ao ar livre, numa praça perto do mar. Que noite linda e agradável! A brisa perfumada, o barulho das ondas, o vozerio do povo – sim, porque o lugar estava lotado de gente. Havia um palco enorme, onde se apresentavam cantores locais e mais tarde o show de Falcão, que na época era o maior sucesso. A partir do palco, formando um semicírculo, muitas barracas que vendiam bebida e comida e algumas delas mais estruturadas, com mesas e cadeiras, lotadas de gente bem-vestida. No meio daquele círculo o povão, gente que não acabava mais, bebendo, cantando junto. E lá no final, recuada daquele fuzuê, um pouco escondida debaixo de frondosa árvore, uma tendinha onde havia uma mesa de plástico e algumas cadeiras: era onde eu ia ficar. A tenda era dessas desmontáveis, e devia pertencer à Secretaria da Saúde porque no frontispício dela estava escrito a palavra “Dengue”, em letras vermelhas bem visíveis.
Aqui um parêntesis. O artista (no caso eu, a escritora) precisa estar preparado para o imprevisto e deve ter capacidade de improvisação. Não deu certo daquele jeito? Contorna, conversa, sorri, concorda e depois desconcorda somente um pouquinho, até desconcordar de vez e modificar a situação a seu favor.
Foi isso que eu fiz. Senti que apesar do lugar completamente inóspito que estava preparado para mim, as pessoas tinham feito aquilo da forma como entendiam, como sabiam, como pensaram que seria melhor. Como eu era escritora, me colocaram longe da fuzarca, da confusão, do tumulto, para que eu pudesse autografar em paz. Mas eu jamais iria me sentar naquela mesa com o letreiro de “Dengue” pairando sobre a minha cabeça, como um imenso aedes em letra de forma. Aí, com muito jeito, conversei com a pessoa e disse que preferia ficar mais perto do povo, para desfrutar da festa, conhecer as pessoas, essas coisas. Que a cidade era linda e o povo mais lindo ainda, e que eu queria estar perto deles. Pedi então para me colocarem numa daquelas barracas que estavam em círculo ao redor do palco. Então a pessoa escolheu a maior delas, cheia de gente elegante, anunciou para a mesa mais chique que a escritora ia ficar ali, e que por favor me “fizessem sala” e me oferecessem bebida e comida.
Eram pessoas muito simpáticas, muita gente bonita, casais, algumas pessoas mais velhas, e fui colocada na ponta da comprida mesa cheia de gente, ao lado de um cara simpático, que deveria ter mais ou menos a minha idade – eu estava com uns 50 anos na época. Ele me ofereceu bebida, camarão, e me ajudou a acomodar os dois pacotes cada um com 20 livros, que eu pretendia autografar. Foi nessa hora que me chamaram ao palco grande para que eu dissesse quem era e falasse sobre o livro à multidão presente. Era algo inusitado, porque é de praxe que outra pessoa apresente o escritor, mas isso não me intimidou, pois palco e microfone são meus amigos íntimos desde a juventude. Disse lá ao simpático que tomasse conta dos pacotes e parti abrindo caminho pelo meio do povo, subi ao palco, falei um pouco sobre o livro, a plateia não deu a mínima pois o que queria era dançar, eu agradeci e voltei para o meu lugar.
Aí o cara me fez umas perguntas sobre o livro, que era um livro sobre qualidade de vida que eu tinha recém escrito, chamado A Magia Do Cotidiano. Respondi, conversamos, ele tomando o uísque dele, e eu a minha coca zero. Ele muito gente fina, sem nenhum sinal de quem quisesse me paquerar, só simpatia mesmo. Aí teve um momento em que ele olhou para mim e disse, cheio de energia: “Vamos vender esses livros!” Pegou um exemplar do pacote e começou a falar com as pessoas. “Fulano, compre aqui esse livro, rapaz. Um livro bom danado. A escritora é essa aqui, Clotilde Tavares, uma mulher inteligente, simpática, pegue o autógrafo dela.” E eu atrapalhada para passar o troco e autografar, mas ele rapidamente tomou conta do “caixa”. Recebia a grana, passava o troco, e quando alguém ia pagar com cheque ele dizia: “Pague em dinheiro, a moça está viajando, não é daqui, vai sair daqui com cheque para ainda ir depositar?” E assim foi. Ele chamava um, chamava outro, mandava alguns comprar dois exemplares para “dar um a Sicrano que está precisando ler isso de qualidade de vida”, e assim foi a noite. Vendemos – ele vendeu – um pacote de 20 livros, abrimos o outro pacote e lá foi ele rindo-se, bebendo uísque e vendendo livro.
Quando só restava um livro no pacote eu peguei e disse: “Esse não. Esse é pra você.” Aí ele riu-se, organizou as cédulas, contou direitinho o dinheiro para prestar contas, eu botei a grana na bolsa e me preparei pra autografar. “Me diga seu nome” falei, “pra fazer a dedicatória.” E ele, com toda simplicidade: “Teotônio Vilela Filho”. Eu quase caio para trás. Um Senador da República! Em pleno mandato! Filho do grande Teotônio Vilela, já falecido, nosso campeão da redemocratização depois da ditadura, o “menestrel das Alagoas” da canção de Milton Nascimento! E o filho deste homem passou a noite vendendo meus livros e passando troco! Era isso que eu dizia a ele, que morria de rir com o meu assombro.
Jamais esquecerei esse cara na minha vida.
São coisas como essas que acontecem ao escritor, trazendo um pouco de aventura e lampejos do inusitado a essa atividade tão solitária e tão sofrida, tão difícil e tão absorvente, que me faz passar horas escrevendo, rasgando, corrigindo, deletando, copiando, colando, me irritando, me aborrecendo, querendo desistir, jurando que vou fazer outra coisa.
E antes que você pense que as aventuras desta escritora são sempre assim, encantadoras e cheias de charme, vou lhe contar outra que se deu aqui mesmo, nesta minha cidade Natal.
Uma editora local chamou uns dois ou três dos seus escritores (eu incluída) para compor uma mesa em um evento de uma livraria, no qual haveria a presença luxuosa do premiado escritor e poeta Fabrício Carpinejar, uma simpatia de rapaz, que nessa época fazia presença diária em um programa de TV e tinha uma grande quantidade de fãs. Chegamos todos, ficamos por ali e na hora da palestra e autógrafos fomos colocados atrás de uma mesa. Primeiro eu, numa das pontas; em seguida, à minha direita, Carpinejar; e na sequência os dois outros escritores da noite, residentes em Natal. A livraria lotada, e os fãs em polvorosa. O apresentador pegou o microfone e apresentou os escritores em poucas palavras porque Carpinejar era uma celebridade televisiva, não precisava apresentação, e a plateia estava ansiosa pelo momento dos autógrafos.
Quando eu digo que o cara “apresentou os escritores” é modo de dizer, porque ele simplesmente não me apresentou. Esqueceu. Não se lembrou, talvez ofuscado pelo famoso que estava ao meu lado e que, inocentemente, capturou toda a atenção disponível. Aí ficou lá aquela situação: os dois escritores do selo editorial, rapazes jovens e razoavelmente conhecidos na cidade; Carpinejar, esplendoroso nos seus piercings e tatuagens; e, ao lado dele, uma “senhorinha”, desconhecida do público jovem que ali estava.
Ariano Suassuna recomenda que a pessoa que está numa situação da qual não pode escapar, e que deve ter paciência e esperar em silêncio que tudo acabe, assuma uma “cara de medalha milagrosa”: aquela expressão resignada, olhos voltados para o alto, pescoço inclinado levemente para a esquerda, boca sem expressão. Foi assim que eu fiquei, enquanto Carpinejar e os outros escritores autografavam seus livros. Até que uma das mocinhas, entre aquelas que se acotovelavam ao redor, excitadíssima, me abordou. “A senhora é a mãe dele? Peça a ele para autografar meu livro, meu nome é Juliana”, falou.
Imagine, meu caro leitor, se eu ia responder a verdade. Imagine se ia ficar bem para mim ser sincera. Imagine se eu ia dizer àquela mocinha: “Não, não sou a mãe dele, eu também sou escritora, meu nome é Clotilde Tavares, é que eles se esqueceram de me apresentar, meu livro é esse aqui, quer ver?” Ah, meu caro leitor! Eu sou paraibana, tenho brio e orgulho. Desabrochei o meu melhor sorriso para a jovem, disse “Sim, sim, sou a mãe dele, minha linda, me dê cá seu livro.” E pedi ao escritor o autógrafo, que foi feito, e o livro passado de volta à garota.
No final de tudo, contei a ele como tinha sido sua mãe por cinco minutos, o que nos rendeu boas risadas.
Nessa noite, não vendi um livro sequer. Mas como se diz por aqui, Natal é uma cidade que não consagra nem desconsagra ninguém. Felizmente.
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- O Menestrel das Alagoas, por Milton Nascimento. É linda essa gravação, a voz de Milton, cheia, firme, potente! - https://youtu.be/yD9T2NjbDdU
- Teotônio Vilela Filho, o simpático inesquecível - https://pt.wikipedia.org/wiki/Teot%C3%B4nio_Vilela_Filho
- Este texto tem 2023 palavras.
http://linktr.ee/ClotildeTavares clotilde.sc.tavares@gmail.com
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