Em viagem de férias, Leda reflete sobre maternidade e casamento

Reportagens

A filha perdida: A maternidade dessacralizada em filme de e para mulheres

Baseado em livro de Elena Ferrante, filme gira em torno de mulher que questiona sua maneira de ter vivido a maternidade

06 de janeiro de 2022

Cefas Carvalho

Baseado em romance da italiana Elena Ferrante, autora elogiada pela unanimidade das minhas amigas e que ainda não li (embora esteja nos meus planos), este filme da Netflix é a estreia da atriz Maggie Gyllenhall (a Rachel de "Batman: O Cavaleiro das Trevas" e que brilhou em "Coração louco") na direção e vem ganhando prêmios importantes nos EUA e em festivais internacionais (melhor roteiro em Veneza) o que lhe credencia bastante.

A trama gira em torno da professora universitária estadunidense Leda que vai passar férias em uma ilha grega, mas a proximidade que desenvolve com uma família, principalmente com a jovem Nina, que tem uma filha pequena, a partir de fatos banais, dispara uma série de gatilhos e ela começa a fazer analogias com o que vê com seu passado, principalmente quanto ao seu casamento e a relação com as duas filhas pequenas, questionando sua maneira de ter vivido a maternidade.

Se o conteúdo é interessante, a forma é talvez melhor. A diretora narra o filme com a pegada de filme de arte europeu, sem pressa para contar o que acontece em cada cena, com silêncios, elipses, subentendidos. Em certa medida lembra "Na piscina", de François Ozon, sendo que este (com Charlotte Rampling) se perde do meio para o fim. Aqui, não. "A filha perdida" consegue melhorar na hora final sem ceder a truques fáceis, soluções simplistas e mantendo uma tensão serena e a sequência de revelações que explicam o comportamento de Leda.

Muito tem se falado sobre os flashbacks que mostram uma Leda insegura e irritadiça com as duas filhas pequenas e que a toda hora questiona a maternidade. O filme também enfoca questões envolvendo sexualidade e questões profissionais quando se é mãe. Ponto para o filme, dirigido e roteirizado por uma mulher e baseado em um livro escrito por outra mulher.

Um ponto que me chamou a atenção é que as mulheres parecem ter gostado muito mais do filme do que os homens. Na minha ´bolha` os amigos acharam o filme morno ou pouco tenso. Já as mulheres em sua maioria acharam o filme corajoso e que coloca a questão da maternidade sob uma perspectiva diferente. Curiosamente os homens pouco ou nada comentaram sobre o papel da maternidade no filme, preferindo elogiar a atriz Olivia Colman (realmente brilhante) e se deter na dificuldade de comunicação da Leda no presente. As mulheres comentaram muito, mas muito mais sobre a Leda do passado, que tem de conciliar a maternidade, os estudos acadêmicos e segurar um casamento que parece não render.

Em um debate no Facebook, ventilei a possibilidade dos homens terem dificuldade em dessacralizar a santa mãe. Para parte considerável dos meus amigos, mães ainda são seres sagrados, que não fazem sexo ou tem desejos secretos e que acham que a maternidade é pareder no paraíso. Pelo menos duas cenas do filme  - que não detalharei aqui para não dar spoiler - devem ter causado horror a boa parte dos homens. Mas, pelo que li nos comentários do debate, fizeram a alegria das mulheres, que se identificaram com o comportamento da Leda jovem.

Curioso em pleno 2022 um filme conseguir atrair percepções diferentes a partir da questão de gênero. Ponto para o filme, cuja diretora sobre escolher um ponto de vista arrojado e se manter nele: De dessacralizar a maternidade e de incomodar o público masculino, pouco acostumado a ver mães tão, digamos, autênticas, no cinema. Um filme de e para mulheres, como já disseram. Que os homens se acostumem a perceber a vida, o mundo, a maternidade, por óticas que não a a do machismo estrutural, que, afinal de contas, é onde está a ideia da ´mãe santificada`.