Santa Luzia retratada pela artista Ângela Bezerra

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A PROTETORA DOS OLHOS

Como Santa Luzia, a santinha de Siracusa cruelmente martirizada pelo imperador Diocleciano, virou a protetora da nossa janela da alma

14 de dezembro de 2022

Clotilde Tavares

Nesta quarta-feira, 14 de dezembro, comemorei meu aniversário. A data sempre me dá muita alegria, e esse ano mais ainda, uma vez que estou viva, com saúde, em boa forma física, escrevendo e produzindo ideias no meu ritmo costumeiro, ou seja, a todo vapor. Mas como vivo falando de mim e todo mundo já sabe quem eu sou, hoje quero falar mesmo de outra pessoa, vizinha de data, e de quem por pouco não recebi o nome se tivesse nascido no dia 13. Refiro-me a Santa Luzia, a santinha de Siracusa, cruelmente martirizada pelo imperador Diocleciano.

A história está toda lá, na “Legenda Áurea”, essa maravilhosa obra medieval editada em português pela Companhia das Letras. O livro conta a história de mais de 170 santos e foi escrita no século XIII pelo monge Jacopo de Varazze, chegando a ter mais edições do que a Bíblia e servindo de fonte de inspiração para milhares de sermões ao longo de séculos. Outra fonte de informações sobre Santa Luzia, no aspecto da tradição popular, é Câmara Cascudo, no seu Dicionário do Folclore Brasileiro.

Luzia, ou Lúcia, nasceu em Siracusa, Sicília. Sendo de origem nobre, tornou-se cristã e resolveu consagrar sua vida a Deus, fazendo voto de castidade e distribuindo seus bens aos pobres. O noivo, ofendido e irritado pela dilapidação da fortuna que um dia seria sua, levou-a à Justiça. O cônsul Pascácio foi o seu algoz, tentando fazer com que ela renegasse sua fé e oferecesse sacrifícios aos deuses pagãos, ameaçando-a com suplícios inenarráveis, queimando-a com fogo e óleo fervente e por fim degolando-a a fio de espada.

A tradição retrata a jovem com vestes vermelhas, um manto verde, a palma do martírio e uma salva onde estão seus dois olhos, que ela própria teria arrancado para enviá-los a um homem que os elogiara, sacrificando sua vaidade pessoal e buscando com isso afastar os homens que pretendiam o troféu da sua virgindade. É a defensora dos olhos e invocada na doença desses órgãos. Tira qualquer tipo de argueiro e aos seus devotos promete uma boa visão até mesmo em idade avançada.

No dia dedicado à Santa Luzia, 13 de dezembro, não se caça nem se pesca. Ainda segundo Cascudo, em história que lhe foi contada pelo pescador Chico Preto, um outro pescador irreverente, sem respeitar a tradição, resolveu pescar nesse dia: ao recolher a rede, achou-a cheia de peixes cegos que foram lançados de volta ao mar pelos pescadores aterrorizados. Ao chegar à agua, os peixes recobraram a visão, nadando para longe.

Curioso é que uma santa tão boazinha dê nome à terrível palmatória de castigo escolar e doméstico, denominada “Santa Luzia dos Cinco Olhos”, em alusão aos cinco furos da palma. Essa denominação é de origem portuguesa, como explica Conceição Barros, na sua tese de mestrado em História da Educação, realizada na Faculdade de Letras da Universidade do Porto: “Este objeto de madeira era constituído por um cabo que terminava numa forma circular com cinco pequenos furos dispostos em cruz. A cruz fará alusão à cruz de Cristo e os cinco buraquinhos parecem representar os cinco sentidos corporais”.

Menina levada que fui, nem tanto pelas travessuras mas pelas opiniões, que sustentava com muito atrevimento, vez por outra estava enfrentando os terríveis “cinco olhos” aplicados com vigor por Mamãe sobre as palmas das minhas mãos. Sou de uma infância onde criança tinha forçosamente que dar razão aos adultos e onde os castigos corporais eram não só permitidos como também recomendados. No meu caso, não adiantou de nada; continuei assim mesmo, opiniosa e do contra, e quem já lidou comigo sabe disso. Comigo, só se consegue as coisas “no jeitinho”. Sou teimosa como Santa Luzia mas, como não sou boba nem aspiro à santidade, dou meu jeito de parar antes de chegar ao martírio.

Durante muito tempo, na minha infância, a imagem da santinha era a última coisa que eu via antes de adormecer, em um quadro colocado de frente para a minha cama. Não recebi o nome, mas recebi a tradição e quem sabe por intercessão de Santa Luzia, a quem dediquei minhas rezas inocentes de criança, é que eu tenho hoje esses olhos tão ativos, tão curiosos, tão videntes das coisas desse mundo e de quantos outros mundos possam existir por aí.

 

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