Autora diz que a literatura dita "feminina" também é construída por homens

Reportagens

Ana Paula Olivier:  "Minha relação com a obra de Hilda Hilst foi um divisor de destino"

Escritora natalense diz que Literatura e o fascínio por Hilda Hilst a levaram a migrar para São Paulo, cidade que adotou e acabou se apaixonando

22 de fevereiro de 2023

Cefas Carvalho 

Ana Paula Olivier é natalense e mora em São Paulo há quase duas décadas. Licenciada em Letras pela Universidade Potiguar (UNP-RN) é mestra em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP e professora de ensino superior de Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira, Produção textual e Formação de Leitores - Letras e Pedagogia e faz doutorado em literatura portuguesa. Atriz e escritora, tem diversos prêmios literários e participação em antologias poéticas publicadas em todo o Brasil. Publicou o elogiado livro de poesia "Infinito sobre o peito" (Penalux, 2017) e prepara para abril o lançamento de “Venha buscar teu livro", pela Editora 7Letras. Tem ainda o inédito para publicar “A Escritura desejante de Hilda Hilst”, resultado da pesquisa de mestrado sobre a obra da poeta e escritora. Confira a entrevista:


Você é natalense, mas mora em São Paulo há quase duas décadas. Como essa migração afetou sua literatura e a sua maneira de ver a arte e a vida? E que diferenças culturais sentiu e sente?

Estou há mais de duas décadas em São Paulo por causa da Literatura e ainda mais por causa da poesia de Hilda Hilst, pois vim cursar o mestrado na PUC/SP, onde pesquisei sobre A Escritura Desejante de Hilda Hilst. Essa migração afetou-me por completo, pois me apaixonei por essa cidade, uma vez que a diversidade e a efervescência cultural sempre foram grandes estímulos literários. Fiz o caminho inverso da Hilda Hilst, pois ela se recolheu na Casa do Sol (Campinas/SP) quando tinha 33 anos e eu vim para São Paulo quando também estava no início da minha terceira década de vida.

O que mudou na minha maneira de ver a vida foi a valorização ainda maior da natureza: uma janela onde se possa ver o céu, uma árvore e ouvir o canto dos pássaros. A valorização ainda mais contundente das amizades e dos amores que perduram, independente das distâncias, das belezas, do caos, a consciência de como esse país é imenso e uma visão mais sociopolítica da vida. Na arte também passei a ter uma preocupação mais sociopolítica, influência da formação na PUC e também de uma passagem pelo Programa de Ciências Sociais .

Aqui em São Paulo, sinto a vida ainda mais efêmera, é como se eu nunca fosse conseguir conhecer e nem viver tudo o que a cidade oferece. Administrar essa ânsia pelas seduções da megalópole é um exercício diário e poético: esse café, sangue quente paulistano, vicia.

São muitas diferenças culturais que sinto aqui, principalmente, estar muito voltada para o trabalho, estar numa cidade que têm uns pedacinhos do mundo distribuídos pelos bairros: Mooca (Itália), Liberdade (Japão), Centro (Nordeste do Brasil), Santo Amaro (Alemanha e Pernambuco), Vila Maria (Bolívia e Nordeste do Brasil) e tantos outros Nordestes nessa Pauliceia Desvairada. Como nos encantou Caetano, aqui em São Paulo: “[...] podermos ver o mundo juntos/ sermos dois e sermos muitos/ nos sabermos sós/ sem estarmos sós/ abrirmos a cabeça para que afinal floresça o mais que humano em nós [...]”. São Paulo para mim, é esse “tenebroso esplendor”. E eu não quero mais viver sem isso.

Você publicou em 2017 o elogiado livro de poesias "Infinito sobre o peito". Como foi o processo deste livro?

Após os meus 45 anos, tendo uma carga horária mais confortável nesses anos de 2016 até 2017, busquei a Editora Penalux e todo o processo de publicação deu muito certo, foi tranquilo e prazeroso. Destaco, especialmente, também ter lançado o livro na Flip (homenagem à Hilda Hilst), em espaço alternativo na Casa do Desejo, em Paraty. Um livro que me trouxe muitas alegrias com participações dos queridos: Pablo Capistrano (4ª capa), o prefácio de Nonato Gurgel (in memoriam) e orelha do Sérgio Mamberti (In memoriam).

É importante também lembrar que o título foi inspirado num verso da Hilda Hilst: Infinito sobre o peito. Quero aproveitar e deixar registrado o meu agradecimento pelo espaço que o Potiguar Notícias, onde você trabalhou, deu ao meu livro, fazendo entrevistas e divulgando sempre que possível.

Como está o processo para publicar “A Escritura desejante de Hilda Hilst” sobre a poeta e escritora por quem você tem fascínio. Como surgiu esse livro e qual a sua relação com a obra de Hilda?

A Escritura desejante de Hilda Hilst ainda será publicada, pois primeiro veio um livro de poemas que será publicado até abril: “Venha buscar teu livro", pela Editora 7Letras. Depois, pretendo retomar o lançamento da Escritura Desejante de Hilda Hilst, resultado da minha pesquisa de mestrado (PUC/SP), orientada pelo professor Fernando Segolin (in memoriam) e que teve a indicação de publicação pela professora Olga de Sá (in memoriam). A minha relação com a obra de Hilda Hilst foi um divisor de destino, pois embora eu já conhecesse a poesia da Hilda, desde os meus 17 anos, quando resolvi fazer o mestrado sobre alguns poemas da antologia Do Desejo, tive a oportunidade de mudar de Estado (RN para SP) e essa nova perspectiva literária ampliou também a minha atuação em sala de aula.

Você é professora de ensino superior em Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira, Produção textual e Formação de Leitores com doutorado em Ciências Sociais. Como esse currículo acadêmico e o trabalho em sala de aula afetam sua maneira de ver sua escrita e a literatura?

Em 2015, de fato, estive doutoranda no Programa de Ciências Sociais da PUC/SP, após cursar disciplinas, infelizmente, vivíamos um período de grande escassez nos investimentos da pesquisa, portanto não fui contemplada com nenhuma bolsa e devido à crise no Ensino Superior precisei me desligar do Programa. A novidade foi que em 2020, entrei para o Doutorado em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense (UFF/Niterói), o que me deixou muito feliz! Também mudei o meu projeto de pesquisa e atualmente, estudo a poesia de Ana Luísa Amaral, sob a orientação da professora Ida Alves.

Estar em sala de aula afeta diretamente a minha literatura, inclusive, estou sempre engajada e atenta para a formação de leitores. Desse modo, estímulo também a recepção e a produção literária contemporânea brasileira e portuguesa, uma vez que, meu mestrado foi em literatura brasileira (Hilda Hilst) e o meu doutorado está sendo em literatura portuguesa (Ana Luísa Amaral).

A minha escrita também é diretamente compartilhada, pois divulgo a minha produção com os meus alunos e muitos deles me seguem nas redes sociais e assim vão aumentando o repertório de leituras, estimulando o interesse por uma literatura mais acessível, sejam repertórios em livros físicos ou digitais, sejam nas visitas aos Museus de Língua Portuguesa (São Paulo) ou do Real Gabinete de Leitura (Rio de Janeiro), quando temos a oportunidade de também assistirmos virtualmente aos Programas Prosa e Verso que divulgam os poetas portugueses. Destaco que esse programa é organizado e apresentado pela professora Ida Alves e muitos professores convidados.

Acredita que exista uma poesia "feminina", ou seja, que só poderia especificamente ser escrita por mulheres?

Não, Cefas, acredito que a literatura dita “feminina” também é construída por homens como por exemplo: James Joyce, Marcel Proust, Guimarães Rosa, Walt Whitman, Fernando Pessoa, quando tomados de certa magia. Embora essa “tradição” feminina, responda com um número maior de mulheres do que de homens: Safo, Clarice Lispector, Hilda Hilst, Ana C e tantas outras escritoras. A própria Virgínia Woolf, em Um Teto Todo Seu (1929), já afirmava que Shakespeare escrevia como um andrógino, não só ele, como Keats, Sterne, Coleridge, Proust, entre outros.

Como avalia o mercado editorial atualmente, principalmente no tocante a escritoras mulheres?

O mercado editorial, atualmente, vem publicando mais escritoras e dando maior visibilidade para essas produções chegarem nas premiações. Vejamos os casos das últimas ganhadoras do prêmio Jabuti, por exemplo. Também temos vários grupos de mulheres escritoras pelo Brasil e Portugal. No entanto, ainda precisamos de apoios mútuos, ainda temos um longo percurso pela frente. Diante de avanços e retrocessos, é muito importante que invistam nas pesquisas feitas para a literatura produzida pelas mulheres. Não por acaso, venho buscando desde a minha graduação, a literatura produzida pelas mulheres, sendo o meu mestrado sobre Hilda Hilst e doutorado sobre Ana Luísa Amaral, como já mencionado em outra pergunta.

Como vê atualmente o "intercâmbio" literário em tempos de internet e redes sociais? Em São Paulo se lê a produção literária feita no Nordeste e outras regiões? O Sul-Sudeste se comunica com outras regiões?

O intercâmbio literário vem acontecendo de maneira efervescente. Percebo, por exemplo, que escritores que eu conheci há mais de 20 anos, aqui em São Paulo, já são reconhecidos pela região nordeste. Às vezes, também acontece o contrário, escritores da região nordeste que eu conhecia há mais de 30 anos, estão sendo reconhecidos nesse eixo cultural Rio-São Paulo. As redes sociais ajudaram nessa divulgação das obras literárias, no entanto, dependemos dos algoritmos. Ainda assim, é instigante que tenhamos esse meio de interação, divulgação e estímulo criativo. Que os livros didáticos e os vestibulares também valorizem as vozes de todas as regiões. Que tenhamos um currículo que valorize a carga horária de literatura para que tenhamos tempo de ler a literatura do nosso país (e não só do Rio de Janeiro e São Paulo). Também é imprescindível que seja feita uma política de valorização da literatura brasileira, seja ela de qualquer região, pois estamos produzindo em solo brasileiro e é essa a literatura que nos representa.