"minha profissão me entregou a visão crua das ruas, das cidades, dos seres humanos", diz autor

Reportagens

André Giusti: "O jornalismo rouba o tempo da literatura, mas nos dá uma visão crua das ruas"

Escritor e jornalista carioca lança novo livro de contos "As filhas moravam com ele", em percorre o universo da classe-média brasileira

29 de outubro de 2023

Cefas Carvalho

Nascido no Rio de Janeiro, mais exatamente no subúrbio carioca de Cascadura, em1968, André Giusti  é escritor e jornalista. Prolífico, em diversos livros publicados em diversos gêneros, entre eles, "A Solidão do Livro Emprestado", "A Liberdade é Amarela e Conversível", "As Estranhas Réguas do Tempo", "Os Filmes em que Morremos de Amor, "A Maturidade Angustiada", "De Tanto Bater com o Osso, a Dor Vira Anestesia" e está lançando seu novo livro, mais um de contos, "As filhas moravam com ele". Destaca-se nas redes sociais pelo uso criativo delas para divulgar literatura. Como jornalista trabalhou em várias empresas, entre elas, Sistema Globo de Rádio, Grupo Bandeirantes de Comunicação e Fundação Roquete Pinto.


Sua infância, adolescência e juventude foram vividas em bairros do subúrbio e da zona norte do Rio de Janeiro. Como isso impactou e ainda afeta a sua literatura?

Impactou bastante e ainda afeta, certamente. A narrativa de meus poemas e as experiências que meus personagens vivem em meus contos, e também em meu romance (Só Vale a Pena se Houver Encanto) inédito, têm, muitas vezes, sua fonte no que vivi e presenciei no subúrbio carioca: a vida geralmente com dinheiro contado, os laços entre os vizinhos da rua, as amizades que atravessam a vida, os mexericos, as fofocas, o falso moralismo, os preconceitos, as saudades da infância e adolescência, os perfumes das flores dos jardins das antigas casas, o estranhamento com o modo de vida da  zona sul, o fascínio pelo mar da Barra da Tijuca ... Mas acho que, de modo geral, as origens sempre permanecem na obra do artista, seja ele escritor ou de qualquer outro ofício artístico. Outro dia fui a uma exposição de Portinari e é nítido como sua infância no interior de São Paulo o acompanhou por toda sua obra.

Você já afirmou que seus primeiros poemas são da década de 1980, época da redemocratização do país e surgimento e consolidação do rock brasileiro. Nesse período, chegou a publicar dois livros de poesia independentes. Qual a avaliação que faz daquele período e de sua obra?

Os anos 80 foram a década de 60 da minha geração. Embora não tenha tido o peso histórico dos anos 60, a década de 80 foi rica em transformações, descobertas, experimentações, foi a década em que descobrimos o valor da liberdade, da democracia, foi quando descobrimos os horrores que aconteceram no Brasil quando éramos crianças. Minha produção poética daquela época acompanhou essa movimentação, especialmente após meus 17 anos, quando incorporei à minha literatura as questões sociais. Mas é claro que a qualidade é sofrível, começando pela falta de uma linguagem própria (eu imitava outros autores). A maioria das coisas é literatice, tanto que nem coloco na biografia esses dois livros quase artesanais, lançados no pátio da universidade em que me formei, no Rio, a Estácio de Sá. Só adquiri minha própria linguagem no final daqueles anos, já quase na virada para os anos 90. Mas é interessante que muita coisa que escrevi naquele tempo, e que inclusive saíram naqueles livrinhos, eu reaproveitei em Os Filmes em que Morremos de Amor (Patuá, 2016) e De Tantos Bater com o Osso, a Dor Vira Anestesia (Penalux, 2021), meus dois únicos livros de poesia. Dois daqueles poemas, inclusive, foram publicados do jeito que escrevi, quase 40 anos atrás. Outros, melhorei, reescrevi, e muitos desses estão em outro livro de poesia (esse inédito) que se chama A Ternura dos Ausentes. Ou seja, as ideias eram válidas, faltava a técnica literária.

 

Sua mudança para Brasília no fim dos anos 1990 deu origem à novela "Eu nunca fecharei a porta da geladeira com o pé" e o livro de contos "A Solidão do Livro Emprestado". Qual sua lembrança dessa época e deste livro?

Foi uma época (dois anos) bem difícil em minha vida pessoal, em que a adaptação à cidade me machucava muito, até pela função profissional, de extrema cobrança e responsabilidade, que eu exercia e que foi a responsável pela minha vinda. Mas como a literatura se faz de drama, dor e porradas que a gente leva, toda aquela fase rendeu o  Eu Nunca Fecharei a Porta da Geladeira com o Pé em Brasília (LGE, 2004), que, inclusive, está disponível em e-book na bio do meu Instagram (@andregiustim68). Quem quiser ler, pode me procurar, que eu encaminho o link, de graça, porque não tenho mais pretensões com esse livro. Já A Solidão do Livro Emprestado (7Letras, 2003 e Penalux, 2003, 2ª edição) é um livro dividido entre Brasília e Rio, porque traz coisas que escrevi lá, na década de 90, antes de vir para Brasília, e outras histórias que escrevi também lá, quando voltei a morar na cidade durante um ano e meio, entre 2001 e 2002.

 Após cinco anos sem publicar, lançou "A Liberdade é Amarela e Conversível", seu quarto livro, em 2009. Considera esse livro um divisor de águas em sua obra e sua narrativa?

Nunca parei para pensar nisso, mas acho que você acertou. Ele pode realmente ser considerado um divisor, porque abandonei as histórias que tinham a viço da juventude dos personagens, algo ainda mais forte em meu primeiro livro (Voando pela Noite, Até de manhã, 7Letras, 1996 e 2013, 2ª edição), e passei a colocar nos personagens as experiências, amargas ou felizes, da vida adulta, dos caras com mais de 30 anos, quando a gente ou assume a própria vida ou não cresce, não progride. Também textualmente ele é um divisor, porque acho que nele aprimorei a técnica literária, a abordagem de situações, as falas dos personagens. Juntamente com A Solidão do Livro Emprestado e A Maturidade Angustiada (Penalux, 2017), A Liberdade é Amarela e Conversível (7Letras, 2009 e 2021, 2ª edição)  acabou formando, sem que houvesse intenção de minha parte, uma trilogia.

 

Nos anos 2000 você manteve um  blog como plataforma de publicação de meus contos, poemas e crônicas. Até hoje você explora bem as redes sociais literariamente falando. Considera uma ferramenta necessária para o autor divulgar sua obra? 

Não sei se exploro tão bem quanto deveria ou poderia (rs). Na maioria das vezes tenho preguiça com rede social, mas hoje elas não são apenas necessárias, mas  fundamentais para divulgarmos o nosso trabalho, ou em nossas próprias contas ou nos blogs e canais literários que cuidam da literatura brasileira contemporânea.

Como jornalista e já tendo trabalhado em várias empresas, como Sistema Globo de Rádio, Grupo Bandeirantes de Comunicação e Fundação Roquete Pinto, considera que o jornalismo é útil para um escritor? o que aprendeu com a profissão para a Literatura?

É engraçado que o jornalismo rouba o tempo da literatura. Não há muito como ser escritor tendo que trabalhar fins de semana, feriados. Se eu não tivesse sido jornalista, talvez tivesse publicado mais livros do que publiquei. Em contrapartida, minha profissão me entregou a visão crua das ruas, das cidades, dos seres humanos, da maldade humana, da barbárie, além de me fazer buscar sempre pelo texto ágil, direto, sem adjetivos, mas sempre com elegância. Muitas histórias criei a partir de minha vivência de repórter, especialmente de polícia, e de comandar redações e apresentar noticiários. Ou seja, o jornalismo é, ao mesmo tempo, no meu caso, inimigo e aliado da literatura.

Você publicou um elogiado livro de poemas "De Tanto Bater com o Osso, a Dor Vira Anestesia", que definiu como " uma espécie de lado B da minha produção poética em mais de 30 anos". Como avalia esse livro?

Poesia é meu gênero literário original, mas só fui publicar poesia quando estava com quase 50 anos de idade, depois de vários livros de contos. Então, havia uma produção represada, inédita, desde a década de oitenta. Os Filmes em que Morremos de Amor juntou o que sobreviveu do que escrevi de poesia na juventude com o que produzi ao longo da fase adulta (lembrando que fiquei quase dez anos sem escrever poemas). Só que nem tudo entrou no livro, ou por falta de espaço, ou porque não tinha a ver com a proposta do livro ou porque precisava ser mais bem trabalhado. Entre 2016, quando publiquei Os Filmes, e 2021, quando saiu De tanto Bater com o Osso, escrevi muito, e a essa nova safra juntei os poemas antigos, melhorados. Ele pode ser chamado de Lado B (minha geração sabe o que é lado A e lado B rs) talvez porque os poemas que estão ali não tinham a urgência de sair que os do primeiro livro possuíam. É um livro mais ácido que seu antecessor, e que, igualmente ao outro, me deixou bem satisfeito.

Como observa o intercâmbio literário entre regiões nesse Brasil continental atualmente? No Sul e Sudeste, por exemplo, se lê o que se escreve no Norte e Nordeste e vice-versa?

Não sei qualificar ou classificar esse intercâmbio, imagino que seja difícil, como deve ser qualquer intercâmbio em um país tão grande. Posso dizer por mim. Leio autoras e autores de todas as regiões, mas onde a pessoa mora ou nasceu não tem qualquer influência na minha escolha. Leio porque o título me chamou atenção, porque li um trecho que gostei, porque achei a capa bacana, porque já conheço o trabalho da autora, do autor. É isso que é importante para mim como leitor. Quanto à segunda parte da pergunta, acredito que, pelo peso econômico do Sudeste, os autores de lá são mais lidos em outras regiões do que o contrário. Mas isso é um palpite meu, bem ralo.

Você está lançando seu sétimo livro de contos, "As filhas moravam com ele". Como foi o processo de escrita desses contos e como está sendo a publicação/lançamento?

É o meu sétimo livro de contos e o décimo no cômputo geral. O processo de trabalho é o mesmo. Coisas antigas que por vários fatores não entraram em livros anteriores, e que foram melhoradas, trabalhadas, reescritas, e coisas novas, histórias que escrevi nos últimos dois anos, após terminar de escrever meu romance. Os contos desse novo livro permanecem no universo da classe-média brasileira, meu cenário de escritor, mas os dramas versam muito mais sobre as relações e conflitos entre as pessoas do que sobre a consciência que as pessoas começam a ter, a partir de uma determinada idade, sobre si mesmas e seu papel no mundo. Eu gosto muito desse livro, e estou gostando muito do trabalho que a Caos e Letras está fazendo na sua divulgação e publicação. Pelo que já li do que foi publicado pela editora, ela é bastante criteriosa, e quando você consegue emplacar um livro em um lugar assim, para mim é bem parecido com ter ganho um prêmio literário.