"Viajei num barco imaginário, algo que a mente e o coração de poeta estranho criam para me enganar"

Colunas

As palavras que brotam no mar

Na estreia de sua coluna Experimento e Verbo, Lívio Oliveira fala sobre as palavras que aprendeu remando solitário

07 de janeiro de 2021

por Lívio Oliveira *

Retorno às palavras. Às minhas palavras, que são as que aprendi remando solitário, curto calado do barco, quase todo pouco, da embarcação, numa imensidão que não calculei. Joguei-me. Dei-me ali. Dei-me tempo. Tempo imenso, intenso, tenso. De semana em semana, mergulhei para experimentar as cores e os cantos das baleias-jubarte. Calado. Calado. Eis a palavra que me viciou nesses dias de oceano: calado. Acalmei-me. Talvez.

O concerto é vivo. Estou nele e fico. Até porque não há peste subaquática. 
Mergulho.

Viajo. Viajo muito por sobre águas calmas e outras perturbadoras, turbulentas, que quase me arremessaram aos arrecifes ou às profundidades da água escura, turva, em espaços geométricos entre ondas. Uns cubículos engradados, simulações, ilusões de ótica. A ética de umas armadilhas. A gente se salva e volta da apneia. Volta e sobe às nuvens para ver o panorama e novamente mergulhar.

O voo também é permitido, mas não se pode perder o ponto exato do oceano.

Viajei num barco imaginário, algo que a mente e o coração de poeta estranho criam para me enganar. Somente a mim, que todos os outros são muito avisados.

Conheço muitas gentes, todas sabem muito mais do que eu. E navegam fácil, fácil, sempre na crista. Sempre nas ondas. Sempre nas vagas. Há tantas vagas, ondas grandes que não se ocupam de homens vazios. Levam sonhos, que são as encomendas dos deuses, que os deuses e as deusas sob águas violentas se fortalecem. 

Uns se iludem e se perdem. Nem heróis são. Fios de Ariadne não servem nos “dentros” do oceano.

Madeira náutica e a cor do oceano. Tudo na retina. E a mão no timão. O meu olhar se fixou no horizonte novamente. Não deixei de imaginar as marinhas sensuais do pintor e poeta mais doce que viveu. Lembro da sua mão levando os pincéis às telas. E aos cabelos esvoaçantes e branquinhos.

A tela foi a caravela. O barco é jangada tosca e firme. Prossigo. 

Passo sob a ponte. Vejo outro pintor. Parou para fitar a Fortaleza quase morta, quase viva.

As companhias são quase nulas, de tão alheias ao sentido dos ventos. Por isso, olho muitas vezes para a última linha, lá onde acaba o desenho da ilha mais distante.

E percebo que uns nem enxergam a lua quando ela sai à noite e contorna as dunas de uma outra vila, tão próxima, tão distante, distante e mais. 

É maio? É e não é. É outra vez. E se repete tanto, parecendo um único dia, todo dia rasgado na folhinha.

Há uma outra paleta sobre os desenhos já feitos nas pontiagudas barbatanas do salgado mar. E escolho escolhos. Mas me sustento na jangada e danço sobre ela. Escolhas novas.

São os contrastes que balançam as vagas, as que molham os meus pés no assoalho da embarcação. Colhi lá, nas águas azuis recuperadas, com os olhos e com as mãos, as palavras que hoje trago. São os peixes que vieram da última pescaria e da observação das baleias no mar tão vivo acolá e aqui dentro.

Balanços. O mar é assim. 

Aprendi nesses dias (de tréguas) e léguas marítimas a ter estômago forte. Nem sou mestre de nada, menos ainda para ensinar sobre sais e tais. Tenho a mesma boca seca que ficou sem beber dos doces líquidos. Preferi me manter do alimento do vento. Um vento que açoita e fortalece. Massageia, ao tempo que dura. Se não tiver cuidado, rompe o bisaco de provisões pequenas que se guarda no pano da vela. Deixo, então, que a vela diga qual vento seguir.

Refaço o caminho desenhando espumas. Reencontro o cais, algo que me foi doado.

O dia é alto e decido retornar. A pele se aquece do último sol da jornada. As palavras continuam brotando nos polígonos verde-azuis, nas lagoas multiplicadas dentro do mar, em cada uma um mistério. Os peixes-voadores levam recados para quem? Já foram tantos e tão poucos entenderam...

Uns navegadores, nalgum lugar, colhem-nas, as palavras amarrotadas e úmidas, como eu o faço. Nem interessa se não procedem assim. Só observo de longe e quieto e percebo os que ainda se jogam em brincadeiras noturnas. O Poço do Dentão é uma imagem antiga para mim. Não me atrevo. Nem de dia. 

À noite, nem-nem. Não posso. Poço.

Durmo um dia de pé no barco. São agradáveis os arredores com as baleias. Elas me guiam. Mesmo quando afundam, guiam-me, mantêm-me com desejo de ir. Buscar o quê? Tudo já foi noutra era. Procurar o quê? Encontro, mesmo que não seja assim.

Curar. Curar a palavra encurralada. E libertá-la nas profundidades. Um dia farei. É o que já faço agora? Não sei ainda. Amo e contorno a fome. Com a palavra que brota e seduz. Sereia sonsa no meu vaguear. O que há de sedutor está no seio da sereia que foge. 

Reencontro. E a sereia novamente se perde no mar, por que quer assim: perder-se.

Netuno. Nemo. Eles não se comunicam. Nadas. Nada. Nadar. Nado. Não há ondas de rádio. As ondas são reais e se ampliam. Até chegam ao alto do meu peito, encharcando o coração que nem sabia que o mar mareava. Eu sou o mesmo desse lugar e me convenço disso. Estou no ponto onde nasci. No ventre. Tudo é molhado ao redor. 

Eu sou a ilha de mim mesmo. Mantenho só a palavra que brota. Só. E me recolho para o sol, que vai nascer logo que a pequena embarcação se desprender de mim e migrar para outras águas, seguindo as baleias corcundas e que cantam longe agora.

*Lívio Oliveira, escritor e advogado público, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.