Segundo biografia, foi em Natal que Jean Mermoz escreveu seu testamento. Foto: Getty images
Reportagens
O autor Roberto da Silva pesquisa a vida do aviador francês desde os anos 90 e leu todas as biografias. Livro é o primeiro escrito em português
17 de julho de 2020
Cinthia Lopes | Editora e redatora
As primeiras aventuras pelo ar passaram por aqui e pouca gente se dá conta da importância de Natal na história da aviação comercial. Tudo começou quando um destemido piloto do início do século XX, o francês Jean Mermoz (1901-1936), descia com seu hidroavião sobre o estuário do rio Potengi ao amanhecer de 13 maio de 1930. O jovem piloto, considerado o “espírito” da Compagnie Générale Aéropostale, completava aqui a primeira travessia aérea comercial para a América do Sul. Esse vôo de São Luís do Senegal para Natal é tido como o marco na história da aviação civil mundial, inserindo Natal como porto seguro para os pilotos das companhias de aviação postal.
Uma intensa vida no ar e em terra, de tenente da força aérea da França a piloto de empresa aeropostal, até o epílogo em 7 de dezembro de 1936, quando fazia um vôo para Natal e seu avião desapareceu no Oceano Atlântico. Feitos que fizeram dele um dos heróis mais queridos da aviação francesa e sua trajetória está registrada em diversas biografias, mas todas, ou as mais importantes, foram escritas por autores franceses.
Jean Mermoz era conhecido também pela elegância e beleza. Foto: Getty Images
Da pequena cidade que visitou tantas vezes, pouco se registrou até agora. Mas de acordo com uma biografia inédita, escrita pelo potiguar Roberto da Silva, aqui em Natal Jean Mermoz escreveu seu testamento aos 29 anos, tirou licença para dirigir um automóvel, tomou agradáveis banhos de mar, escreveu cartas, reclamou do hotel sujo e miserável e até chegou a ser homenageado por autoridades.
É dessa aproximação com Natal que se insere esta nova biografia do aviador. O texto está concluído, porém o autor ainda não agendou lançamento. Com 688 páginas, já está sendo considerada a maior e a primeira escrita em português. O prefácio é de autoria do jornalista Vicente Serejo.
Por vários anos Roberto da Silva esteve em busca de informações sobre o personagem. De 1990 para cá leu todas as biografias de Mermoz surgidas na França, algumas presenteadas por amigos. Desde a primeira, Jean Mermoz, de Jacques Mortane, publicada em 1937, até as publicadas neste século. Somado ao material biográfico original, o autor pesquisou em documentos e fotografias, a maioria cedidas pelo ex-diretor da Aliança Francesa Bernard Alléguède, amigo de longa data.
A partir das biografias confrontou informações e encontrou algumas divergências. Segundo o escritor, existem equívocos que foram repetidos em mais de uma biografia. “Em meu livro procurei restabelecer a exatidão de muitas datas, muitos fatos, muitos nomes.”
A biografia também virá bem ilustrada. Boa parte do material foi doada por Bernard Alléguède, uma coleção adquirida em instituições francesas e cedidas a ele nos anos 70 por antigos mecânicos e pilotos da Aéropostale.
Para Roberto, o maior desafio foi se subsidiar em uma bibliografia francesa, uma vez que não conhece nenhuma biografia de Mermoz em língua portuguesa. “Espero tornar acessível, em nossa língua, informações que somente eram acessíveis aos francófonos. Minha maior satisfação será permitir às novas gerações o conhecimento da vida desse herói francês, sobretudo porque o Brasil, especialmente a cidade do Natal, foi um dos paraísos de muitas de suas ações.”
Nascido em Pedro Velho, Roberto da Silva é professor aposentado, graduado em Letras pela UFRN e mestre em literatura brasileira pela UFPB, tendo lecionado como professor do ensino médio em escolas de Natal e no IFPB. É dele outros livros que se relacionam com franceses no Rio Grande do Norte. Luís, toujours lui – Cartas de Câmara Cascudo a Bernard Alléguède (2002) e Os franceses no Rio Grande do Norte, 2ª ed., (co-autoria de Bernard Alléguède) (2005), dentre outras obras.
O autor Roberto da Silva é professor aposentado e mestre em literatura, além de autor de vários livros. Foto: Cedida
Ele respondeu a seguinte entrevista ao Típico:
Quando a história do piloto Jean Mermoz passou a fazer parte de sua pesquisa?
Desde 1990, eu conhecia a mais célebre biografia do piloto, o livro Mermoz, de Joseph Kessel, publicado em 1938. No entanto, somente cerca de quinze anos depois, quando preparei a segunda edição, revista e ampliada, de Os Franceses no Rio Grande do Norte, de Bernard Alléguède, ao reler o livro de Kessel, pude avaliar melhor a grandeza desse pioneiro da aviação postal. Em 2010, quando li Défricheur du ciel (Desbravador do céu, em português), livro em que Bernard Marck reuniu grande parte da correspondência de Mermoz, descobri outros aspectos da personalidade desse homem extraordinário. Os que mais me atraíram foram sua coragem, sua inteligência, a confiança em sua própria capacidade e sua modéstia. Em 2014, fui ver a “Exposição Memória da Aéropostale”, na Assembleia Legislativa. Naquela ocasião, conversei com visitantes e notei que eles, até então, somente sabiam ter sido Mermoz um aviador. Outros apenas conheciam seu nome em uma rua e em uma escola em Natal. Vi um grupo de alunos dessa escola e procurei ouvi-los, querendo descobrir o que sabiam do patrono. Percebi que estavam descobrindo a história do piloto naquele evento. Daí surgiu meu desejo de escrever um artigo sobre sua correspondência. Publiquei-o, juntamente com a tradução de duas cartas e seu testamento, na Revista da Academia Norte-Riograndense de Letras, nº 49, out. – dez. 2016. Abimael Silva, o laborioso livreiro e editor, com seu contagiante entusiasmo, sugeriu que eu ampliasse esse artigo transformando-o em um livro. Acrescentou que o publicaria na “Coleção João Nicodemos de Lima” do Sebo Vermelho. A partir de então, iniciei as pesquisas.
A história da aviação tem muitos pioneiros, por que Jean Mermoz se destaca na sua opinião?
Por sua bravura, sua intrepidez, pela ousadia em fazer o que todos os seus companheiros consideravam impossível. Bons exemplos disso foram o voo noturno e a travessia do Atlântico em voo direto, com a precariedade de aeronaves e instrumentos da época. Até então, os hidroaviões amerrissavam no oceano, onde os avisos estavam posicionados para garantir o reabastecimento de combustível. Foram duas travessias pioneiras sobre o Atlântico, em hidroavião em 1930, em um voo direto de Saint-Louis do Senegal a Natal, e em avião terrestre, pouco menos de três anos depois. Daí ele ser considerado o “espírito da Linha”.
Quais os desafios de fazer este livro?
Minha pesquisa é independente, não estou integrado em nenhuma instituição, não contei com apoio financeiro, bolsa de pesquisa ou algo similar enquanto a empreendia. O valioso apoio veio de amigos que me presentearam com livros fundamentais. Assim, minhas fontes primárias foram pouco numerosas, basicamente documentos disponíveis em sites da Internet. Predominantemente, busquei informações em livros. Creio que o maior desafio foi me subsidiar em uma bibliografia francesa, uma vez que não conheço nenhuma biografia de Mermoz em língua portuguesa. Espero, com meu trabalho, tornar acessível, em nossa língua, informações que somente eram acessíveis aos francófonos. Minha maior satisfação será permitir às novas gerações o conhecimento da vida desse herói francês, sobretudo porque o Brasil, especialmente a cidade do Natal, foi um dos paraísos de muitas de suas ações.
Como é fazer uma biografia conhecendo outras já existentes sobre ele?
Como disse, consultei quase todas as biografias de Mermoz surgidas na França, desde a primeira, Jean Mermoz, de Jacques Mortane, publicada em 1937 (precioso presente que recebi de Vicente Serejo), até as publicadas neste século. Infelizmente não me chegou a tempo um livro que certamente me teria sido útil, Mermoz, ses vols – la vérité, de Bernard Bacquié. Confrontei as informações e notei muitas divergências. Há equívocos que foram repetidos em mais de uma biografia. Em meu livro procurei restabelecer a exatidão de muitas datas, muitos fatos, muitos nomes. Um renomado biógrafo, autor de um dos livros mais bem documentados sobre Mermoz, afirmou que o piloto conheceu sua futura mulher, Gilberte Chazottes, “moça de uma família francesa estabelecida em Recife”, em “Salvador de Bahia” durante as férias no verão de 1928. Absolutamente inexato: ele a conheceu em Bahia Blanca, na Argentina, onde ela nasceu e onde morava. Recife foi apenas o lugar onde se encontram em maio de 1930. Logo que chegou a Natal, por ocasião de sua travessia pioneira, Mermoz seguiu para a capital pernambucana, onde o navio Mendonza, em que Gilberte seguia para a França, ali aportou. Em uma carta, de Recife, em 16-05-1930, Mermoz narrou esse encontro a Madame Gabrielle Mermoz, sua mãe. Além disso, em 1928, quando Mermoz vivia em Buenos Aires e estava extremamente ocupado na implantação e no desenvolvimento da Linha na América do Sul, ele não teria condições de passar férias em Salvador.
Sua biografia o aproxima dos fatos e acontecimentos ocorridos aqui?
Não somente o aproxima de fatos e acontecimentos ocorridos aqui, mas o coloca como protagonista. Não encontrei registro sobre nativos com quem ele se relacionava aqui. Pelo que pude apurar, os contatos dos franceses com os natalenses eram meramente profissionais. Eles tinham pouco tempo para o lazer, a preocupação era com o trabalho, a pontualidade no transporte da correspondência. Já ouvi relatos concernentes ao pessoal do correio aéreo francês que somente podem ser incluídos no anedotário, mas sem fundamento histórico. Isso não é somente em Natal. Também li relatos muito fantasiosos de outras escalas. Acreditar nisso é desconhecer a rotina dos pilotos, dos mecânicos e demais membros da família Aéropostale.
O livro traz algumas revelações dessa relação, algumas curiosidades?
Da relação de Mermoz com a cidade, sim. Com pessoas, não. Aqui em Natal ele fez seu testamento, em 1930. Divulgo integralmente no livro. Cheguei a ver em um site de vendas de documentos uma licença que Mermoz obteve para dirigir carro em Natal. Quando voltei ao site para copiar, não encontrei mais. É possível que já tivesse sido adquirido por algum colecionador. Ele gostava dos banhos de mar em Natal. E chegou a confessar o bem que esta cidade lhe fazia. Mas, quando ele veio pela primeira vez, em 1930, foi forçado a adiar seu retorno à França devido aos ventos que não lhe permitiam decolar. Então, nessa ocasião, conforme Kessel, ele viveu aqui dias muito tristes, monótonos. Seu estado de alma, sua impaciência por estar atrasando o correio certamente contribuíram para que ele, então, detestasse a cidade. Em Il était une foi Mermoz (Era uma fé Mermoz, em português), Bernard Marck transcreve um trecho da carta que daqui escreveu Mermoz para sua mãe, em 21-06-1930, em que ele fala das ruas sujas e tristes de Natal. E do sórdido hotel em que estava hospedado e do qual saíra por causa das pulgas, das goteiras, das formigas nas paredes.
Sua presença física também era um atrativo para os natalenses?
Era um atrativo em todos os lugares onde ele viveu. Os biógrafos que o conheceram, como Jacques Mortane e Joseph Kessel, fazem alusão à sua beleza, a seu sorriso, a seu carisma. Jean-Gérard Fleury, autor de La Ligne (A Linha, em português), que também o conheceu, dedica linhas e linhas à sua harmonia física.
A relação da aviação comercial com Natal é um capítulo importante da história, mas até hoje não existe um espaço organizado para contar esses acontecimentos, como um museu. Por que temos pouco apreço por esses episódios?
O descaso com a memória é um problema em todo o Brasil. Creio que contra isso, nos domínios da Aviação, lutam os abnegados da Fundação Rampa e devo lembrar que em Parnamirim foi inaugurado em janeiro deste ano, no antigo Aeroporto Augusto Severo, o Centro Cultural Trampolim da Vitória, que certamente contribuirá pela preservação da memória da Aviação em nosso estado.
Também tivemos o nosso pioneirismo, como uma das primeiras escolas de aviação e mulheres aviadoras. Acredita que existam ainda outros personagens cujas histórias mereciam um livro?
Sim, certamente. Há livros interessantes sobre Aviação no Rio Grande do Norte. Entre os autores que se dedicaram ao tema lembro Paulo Pinheiro de Viveiros, Pery Lamartine, Fernando Hyppolito, Luís da Câmara Cascudo. O assunto é vasto, há muitos outros aspectos a serem explorados e figuras a serem estudadas.
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