1974 e 2011 – Flanando no pátio de São Pedro, Recife. As fotos têm quase 40 anos de diferença

Colunas

AS RUÍNAS DO PRESENTE

Caminhar é uma forma de ver paisagens e, também, como modo não somente de ver, mas sobretudo de criar paisagens

25 de agosto de 2022

Clotilde Tavares

Morei, estudei e trabalhei no bairro Petrópolis de 1970 a 1977. Eu tinha entre 22 e 30 anos.

Percorri esse bairro a pé muitas vezes, sabendo de cor onde era cada casa, cada local de comércio, cada repartição.

Hoje, 50 anos depois, estou morando aqui novamente.

Da minha janela no décimo andar vejo a rua João XXIII, que escala o morro de Mãe Luiza, e pela qual eu subia a pé, logo depois do meio-dia, até o posto de saúde do bairro. Aí atendia 20 a 30 crianças antes de descer fazendo o caminho inverso até o Hospital das Clínicas, onde tinha aula às três da tarde.

Ao lado do meu prédio, quase vizinho, está o ginásio do Atheneu onde, em 1976-77, vi deslumbrada o show de Astor Piazzola, que acontecia ali, na sua única apresentação em Natal.

Caminhando até a Prudente de Morais, lembro da sede da Polícia Federal, pertinho da Maternidade onde eu, ou alguém da turma, ia liberar os shows de Gonzaguinha, Alceu e Fagner, para ajudar a Mirabô na produção, morrendo de medo de ficar lá também, presa por algum motivo, ou mesmo sem motivo, como era habitual.

O complexo da saúde: Hospital das Clínicas, Maternidade Escola, Faculdade de Farmácia, Hospital da Pediatria, Faculdade de Medicina e Escola de Enfermagem: onde estudei e depois virei professora.

Os lugares onde morei: rua Fabrício Pedrosa e as três casas na Pinto Martins, nos números 975, 975-A e 856.

Os bares daquele tempo: Tenda do Cigano, Asfarn, Bandern, Veleiro, Saravá, Postinho, Castanhola, Caravela, Iara-Bar.

Outros lugares: a Fundação José Augusto, a sede social do ABC, shows no Juvenal Lamartine, as piscinas do Forte, a casa de Mirabô, o Artelier, de Claudinho e Katia, a Galeria do Povo, a piscina do Hotel Reis Magos e a boate Royal Salute, do mesmo hotel, o restaurante Mirante, a Praça Cívica.

Os personagens: o “vampiro” da 2 de novembro, o jornaleiro Alberi, o dono de bar Nazareno, o “tarado” da Praia dos Artistas, o surfista Osíris Brás, o sanfoneiro Zé Minhoca, o rabequeiro André.

Vou me lembrando de cabeça, sem recorrer a anotações.

Então me deu saudade, e tive vontade de visitar de novo esses lugares, fazendo uma ponte poética e memoriosa sobre esses 50 anos, ligando passado com presente, talvez na tentativa de recuperar um pouco a juventude perdida.

Há um livro de Francesco Careri, Walkscapes, em cujo prefácio Paola B. Jacques acentua a importância de “...caminhar como forma de ver paisagens e, também, como modo não somente de ver, mas sobretudo de criar paisagens.” Menciona a “caminhada como prática estética” e o trabalho dos stalkers romanos, na sua caminhada de 4 dias e 3 noites em torno de Roma, percorrendo 60 km.

A partir disso tive a ideia de contornar o bairro, caminhando nos limites, procurando locais de escape, de conexão, de oposição, mas sobretudo de recuperação de vestígios que tivessem atravessado esses 40-50 anos, como recomenda Walter Benjamin: caminhando no limite, sempre com um pé no vazio, nesse delírio ambulatório noturno, tal como o fazia nos anos 1970. Um tempo em que eu andava a esmo, procurando o espírito da noite, o terreno baldio, a nova Babilônia oculta entre as casas abandonadas com suas janelas cegas, apenas montes de tijolos e arquitetura fora de moda, com seus fantasmas noturnos e vultos perdidos, em busca de um canto escuro para sonhar. E citando ainda Paola B. Jacques: “... a nova Babilônia é aqui e agora, basta estar atento para buscar a cidade nômade, escondida na cidade sedentária.”. 

Estou sempre vislumbrando esse percurso numa oscilação entre prosa, poesia, ensaio, ficção e memória, quando as caixas cheias de fotos se abrem e deixam jorrar sua paisagem desconexa de casas e gentes, e outras caixas cheias de cartas, panfletos, convites, folders, contas de bar, extratos de bancos, bilhetes também se abrem – desses túmulos jorram vestígios e traços pedindo para serem fontes, antes que se despedacem no pó do tempo.

O medievalista Jacques Le Goff introduz o conceito de “lugares quentes”, que prefiro chamar de “hotspots”. São lugares ou monumentos que determinam o ordenamento das ruas e a circulação das pessoas. Podem ser castelos, igrejas, praças, mercados, pelourinhos, cemitérios ou necrópoles, fontes, fortalezas, patíbulos, ruas de artesãos, moinhos, chafarizes, e muitas outras estruturas da cidade medieval – que é o tema da pesquisa de Le Goff. 

Na cidade de hoje, teríamos shopping centers, praças, conjuntos de museus, ou de teatros/ cinemas, estádios esportivos, grandes igrejas, complexos de atenção à saúde, orlas de praias e rios, entre outras.

São lugares de grande afluxo de pessoas, e onde sempre tem movimento.

Petrópolis tem os seus hotspots.

O grande complexo hospitalar-educacional da UFRN – Hospital Universitário Onofre Lopes (HUOL), e a Maternidade Escola Januário Cicco.

O Colégio Estadual Atheneu Norte-Riograndense, criado em 1834, ocupando o atual edifício desde 1954.

O Polo gastronômico, turístico e palco de shows, que tem seu centro no cruzamento da Rua Seridó com a avenida Campos Sales, e é chamado de “Polo Petrópolis”. Também é o centro carnavalesco do bairro – o prédio em que habito está aí encravado.

Alguns excelentes restaurantes também estão aqui, e o comércio caro e “grã-fino” da rua Afonso Pena, “a nossa ‘Oscar Freire’”, como dizem as “socialites” locais. 

O Centro Comercial Aluísio Bezerra (CCAB-Norte) com lojas, cafés e sorveterias.

O comércio popular: o Mercado Petrópolis, hoje misto de mercado tradicional comercializando alimentos, mas também como espaço cultural, abrangendo lojas de antiguidades, brechós e sebos, com palco, pequeno auditório e programação cultural. 

As praças: Praça Cívica, tendo ao lado o Palácio dos Esportes, e a Praça das Flores.

Mas eu precisava de um mapa, um trajeto, uma planta, um roteiro, um guia para o percurso, mesmo sabendo que aqueles quadrados no mapa não são quadrados: são casas, lojas, escolas, hospitais, praças, academias e consultórios, desenhados ao longo das artérias pulsantes das ruas e avenidas, unindo e separando, delimitando fronteiras. Sobre elas, tão bem definidas na prancheta, sobreponho a cartografia sentimental que se estende a Areia Preta, até a altura de onde hoje é o Farol Bar, se dirige depois para o Norte onde beira a orla marítima, e a seguir vai para o Oeste, englobando toda a Brasília Teimosa e uma parte das Rocas, para voltar ao Hospital Universitário. Entre 1970 e 1977, dentro desse perímetro, morei em quatro lugares diferentes e, ao longo do dia, de par com as atividades da Universidade, atendia crianças e suas mães, moradoras das comunidades da rua do Motor, Brasília Teimosa, Areal e Rocas. À noite, vivia o espaço da boemia, dos restaurantes, bares e da convivência no cotidiano dos tipos populares, das discussões políticas sob o temor da repressão da ditadura militar, e do deslumbre hippie/maluquetti da turma da qual eu fazia parte e que deu nome à Praia dos Artistas, naqueles anos ditos de chumbo mas, ao mesmo tempo, ensolarados e cheios de loucura. Espaço habitado e percorrido ao longo de Petrópolis e cercanias, de indistintos limites nos passos noturnos, sempre com um pé suspenso sobre o vazio.

É nesta hora que se coloca, para o presente, uma questão logística: como realizar a caminhada? A resposta é óbvia:
- Flanando.

Walter Benjamin, de novo, recomenda: - “Não é preciso fazer o tempo passar, é preciso carregá-lo em si. Carregar-se de tempo como uma bateria: tipo: o tipo flâneur.” 
Mas o que é flanar? 

Flanar era uma prática lá em casa. Papai dizia: 
- Vamos flanar?

Saíamos. Postura de Papai: mãos para trás, passo lento, ouvido atento. Eu junto. O passo regulado pelo dele. Ia parando. Encontrava alguém, trocava duas frases, continuava. Parava e comentava algo que via, ou algo em que pensava.

De volta à casa, Mamãe perguntava:
- Onde vocês tavam?
E ele:
- Flanando.
Não se perguntava mais nada. Flanar era verbo intransitivo.

Hoje só andamos utilitariamente. Flanar é quase um crime, não serve para nada, não produz nada. Qual pecado seria maior para o capitalismo do que ficar à toa? Podemos andar, sim, mas para perder peso, para tonificar as coronárias. Andamos nas academias ou nas faixas das avenidas delimitadas para isso, e precisamos de roupas e calçados especiais, e de um ritmo especial, e de uma postura especial, e de um subtexto mais especial ainda que é: - Está vendo como eu sou saudável e responsável comigo mesmo, cuidando da minha saúde? E temos que incorporar o olhar superior sobre aqueles que simplesmente andam para pegar o ônibus, ou porque vão à farmácia, ou porque voltam dela, ou porque caminham até o carro.

A cidade contemporânea matou o flâneur, essa criatura sempre disposta à experiência do próximo passo, que deve ser sempre um passo sobre o vazio, em busca da Nova Babilônia, que vive nas amnésias da cidade contemporânea.

Essa minha descoberta da reflexão teórica sobre a caminhada como atividade estética é recentíssima, e derivou das discussões propostas pela disciplina de História Urbana, que cursei em 2021, no curso de bacharelado em História da UFRN. Todos os passos que dei até agora flanando simplesmente não carregavam de forma consciente essa preocupação – o que parece ser menos uma deficiência do que uma virtude.

Em janeiro de 2020 li Hoferweg, um livro/relato do caminhante/artista visual Renato Hofer sobre uma caminhada de 800 km entre Praga e Paris, por ele realizada – uma caminhada programada, com objetivos claramente estéticos, sendo o próprio Hofer um praticante dessa atividade. Senti o impulso de me levantar da poltrona e imediatamente sair andando. Não o fiz, é óbvio, mas a ideia ficou comigo. Meses depois, na disciplina referida, o trecho motivador do Benjamin proposto pelo professor veio reforçar esse desejo e alimentar o impulso.

Mas, malgré moi, sou uma flâneuse que não anda mais. Descobri a caminhada como atividade estética só agora, que não posso mais caminhar. Hoje sou aquilo que se chama de “pessoa com mobilidade reduzida”. A limitação física adquirida com a idade me permite apenas o liso granito dos shoppings e espaços assépticos da cidade contemporânea, com acessibilidade garantida, sem degraus ou irregularidades no piso.

Então, como pode uma pessoa que não anda flanar no bairro, ou na cidade, e fazer disso uma experiência estética, e – mais importante ainda – sair em busca da Nova Babilônia?

Simples: andando no street-view do Google. Uma metodologia ainda passível de pesquisa, estudo, experimentação e teste, para ver como funciona.

Tem jeito para tudo. Na poltrona, de mouse em punho, lá vou eu. Benjamin recomenda um passo sobre o vazio, e eu adapto para um clique sobre o vazio. E quando a curiosidade sobre um trecho é grande, eu espero o domingo de tarde, quando há pouco movimento, e pego o carro, e passo bem devagarinho em frente.
Então ocorre o milagre: a cidade de 50 anos atrás ergue-se ao meu redor, como uma projeção luminosa, sobre as ruínas do presente.



Alguns livros, links e referências, para a sua curiosidade. 
“Passagens”, do genial Walter Benjamin. Um clássico.
“Hoferweg”, de Renato Hofer, caminhante/ artista visual.
“Anacoreta urbana”, texto que escrevi em 2020, do qual brotou este que você acabou de ler. 
Petrópolis: conheça melhor seu bairro. Prefeitura Municipal do Natal, SEMURB. 



http://linktr.ee/ClotildeTavares         clotilde.sc.tavares@gmail.com 
 
 
 
 
Eu, flâneuse