Faroeste Ataque dos Cães, de James Campion, revisita o Western para além de debate de gêneros

Agenda Cultural

Ataque dos Cães: Entre a solidão, a memória e os afetos escondidos

A inversão dos estereótipos se torna muleta do revisionismo. Mas, se há algo que merece destaque aqui é, no final, o desejo de outro gênero

22 de dezembro de 2021

Marcos Aurélio Felipe *

Amanheci, vendo Ataque dos cães de Jane Campion. Está em exibição no Netflix e vem sendo aclamado pela crítica mais atenta. Campion nos apresenta aos homens e suas histórias, o quanto experienciaram do mundo e do tempo em que viveram. O que restam são as memórias - do olhar sobre a colina como memória de outro olhar, da temperatura da pele sobre a pele, da sela onde montava Bronco Henry. Aqui, os fantasmas - típicos e atípicos - do velho oeste são os mesmos e são outros. Até certo momento, como personagem do extracampo, Bronco Henry parece soar como uma dessas figuras mitológicas de um tempo e de um gênero.

O que resulta do modo como Jane Campion trabalha a relação de Phil com os fantasmas do seu passado, localizado em uma ambiência de vaqueiros (ou cowboys) e masculinidade tóxica, inevitavelmente, me fez lembrar dos personagens e do mundo do romance Grande Sertão: veredas, ainda que a chave seja completamente outra e sejam outros os desenhos dos homens e suas histórias de afetos escondidos. Principalmente porque, em Power of the dog, o personagem de Benedict Cumberbatch não se enreda em dilemas, mas só em desejos, como em seus banhos secretos naquele lago em meio a lenços borrados pelo tempo, ao corpo enlameado e a fotografias guardadas em uma caixa.

Em Ataque dos cães, com o gênero e suas crises, o cinema e suas fabulações, o cinema de Campion desenha sobre amplas paisagens, que parecem de plástico, “um lugar de solidão”, como lembra Phil ao jovem Peter (Kodi Smit-McPhee). Resta saber de qual solidão estava falando o cowboy Phil Burbank: se daquele rancho encravado entre as montanhas de Montana, EUA, ou dos personagens em seus segredos: do próprio Phil, da esposa do seu irmão George: Rose; ou do jovem esquisito, Peter – estudante de medicina e, em todos os sentidos, um ponto fora da curva em meio aquele mundo de homens machos e a um gênero que se redesenha.

Se o faroeste não tem a mesma face, que vem sendo reinventada há décadas, o que, aliás, não constitui um fato do cinema contemporâneo, as crises do gênero parecem ter chegado ao esgotamento. A cada novo filme que deseja plantar um novo olhar, é como se as propostas revisionistas fossem sempre as mesmas e já precisassem ser superadas. A quebra e a inversão dos estereótipos se tornaram muletas do revisionismo, mas  se há algo que merece destaque em Ataques dos cães é, no final, o desejo de outro gênero, que acontece em um momento chave da relação entre Phil e Peter, que parece querer se prolongar, mas logo se esfacela da perspectiva de uma janela, no que está dentro e, ao mesmo tempo, fora da imagem.

(*) Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e autor do livro "Ensaios sobre cinema indígena no Brasil" (2020, Ed. Sulina).

 

Ataque dos Cães | Power Of the dog

Onde Disponível na Netflix
Classificação 14 anos
Elenco Benedict Cumberbatch, Kirsten Dunst, Jesse Plemons
Produção Reino Unido/Canadá, 2021
Direção Jane Campion