Quem era a Teteia, onde Elino "limpou a vista" antes de ir bater na Coreia? Foto: TN/Rodrigo Sena

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BARCO PERDIDO BEM CARREGADO

Clotilde Tavares percorre a Natal cantada em "Forró da Coreia", de Elino Julião, referência importantíssima para o forró

16 de junho de 2022

Clotilde Tavares

É só imaginar: faz de conta que você compra um monte de coisas de valor e carrega um navio com elas, para entregar em algum lugar. No meio da viagem o barco se perde e fica vagando por aí, prato cheio para qualquer sabido que o encontrar primeiro e se apossar dele.

Essa imagem “barco perdido, bem carregado” eu conheço desde criança e sempre a vi ser aplicada àquelas pessoas que estão por aí, inocentemente, dando sopa, cheias de amor pra dar, soltas na gandaia e sem ter noção do perigo que correm.

Há uma música de Elino Julião que começa assim: “Barco perdido, bem carregado/ Eu tinha chegado em Natal/ Muito mal eu sabia onde era as Rocas/ Caí na fofoca legal”, diz a primeira quadra, traçando o retrato da situação. E continua: “Do Areal eu fui à Pista/ Limpei a vista na Teteia/ Saí tomando uns capilé/ E quando dei fé, tava na Coreia…”

Reconstituindo o roteiro do personagem, vemos que ele não conhecia a cidade pois “muito mal sabia onde era as Rocas”. Junta-se a uma turma, das Rocas passa ao Areal e do Areal à Pista, que era como chamavam na década de 1950 à Avenida Hermes da Fonseca, a primeira avenida asfaltada da cidade, tendo sido o asfalto feito pelos americanos na época da Guerra. Aí o compositor diz que, depois de chegar à Pista, “limpou a vista na Teteia”. Limpar a vista como? Vendo a paisagem? Haveria ali, antes do horizonte ser tomado por edifícios, um lugar especial para visualizar o azul do mar ou o verde do rio ao longe? E que Teteia era essa? Perguntei a um, perguntei a outro, entrevistei notáveis e conceituados historiadores e memorialistas, mas ninguém me dava notícia do que seria a Teteia.

Aí telefonei para o próprio Elino Julião, que me solucionou o mistério. Segundo ele, na curva da Pista, quando a Hermes da Fonseca dobra ali na Praça das Flores e se transforma na Joaquim Manoel, pertinho de onde hoje é o Mercado de Petrópolis, havia uma barraquinha, uma birosca, onde a rapaziada encostava pra tomar uma cachacinha com parede de tripa ou ribaçã assada, siriguela ou picado. A proprietária, idosa, mal humorada, reclamando de tudo, cachimbo no canto da boca, um dente lá e outro cá, um pano amarrado na cabeça, atendia pelo doce nome de Teteia. E “limpar a vista” era tão somente tomar uma “chamada”, para aclarar as ideias.

Com efeito, o personagem da música sai dali “tomando uns capilés” e quando dá acordo de si está na “Coreia” onde, como repete no estribilho, “só tem veia, só tem veia, no forró da Coreia…”

Elino ainda me informou que o tal forró ficava nas imediações da lagoa que existia onde hoje é o Centro Administrativo. Forró pobre, decadente, sem paredes, latada precária, fora de mão, longe de tudo, frequentado apenas por aquelas mulheres que, desgastadas pelo exercício profissional, banidas dos bordéis de luxo, somente ali encontravam guarida.

A segunda estrofe da música fecha a história e é um apelo do personagem, ainda atordoado pela terrífica visão das velhas bacantes: “De outra vez quando eu for ao Rio Grande/ Por favor não me deixe eu andar só/ Eu prefiro ficar em Igapó/ Daquele forró, tenho receio/ A Praia do Meio é bom pra mim/ No Alecrim a gente se faz/ Eu fico lá trocando ideia/ Na Coreia eu não vou mais…”

Elino Julião faleceu em maio de 2006, aos 69 anos. Era uma referência importantíssima para o forró, tendo sido parceiro de Jackson do Pandeiro. Escrevi a apresentação de um dos seus discos, onde lembro que a pessoa pode até nem saber quem é Elino Julião, mas sabe que foi Nascimento que cortou o rabo do jumento; já ouviu falar no baile do Tancredo e no forró da Coréia. Suas músicas se entranharam de tal forma na nossa cultura que já fazem parte do imaginário do povo nordestino. Suas músicas - e as de artistas como ele - continuam sendo o único antídoto contra o veneno desse forró processado industrialmente, cheio de aditivos estranhos, que altera a saúde da nossa música.

Elino tinha uma voz belíssima, bem modulada, saborosa. Era um cara divertido, engraçado, um homem encantador. Quando ele ganhou o Prêmio Hangar de Música pelo conjunto da obra, fui convidada para entregar-lhe o troféu. Fiz os elogios de praxe, chamei-o ao palco do Teatro Alberto Maranhão. Aí lá vem Elino, deslumbrante em um terno branco por cima de uma camisa azul brilhante, chiquérrimo, um arraso. Abraçou-me, me deu um beijo e cadê me soltar? Eu querendo formalizar a entrega do troféu mas ele estava lá, com uma pegada seguríssima, a mão na minha cintura.

Esse era Elino Julião. Risada gostosa, encanto de pessoa, artista completo, força sempre viva da nossa cultura.


*Este texto foi publicado no livro Notícias da Existência do Mundo (Natal, Escribas,2017. p.70) e no blog Umas&Outras.



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