Anchella Monte, Thiago Medeiros, Kalliane Amorim e João Andrade lançam em 2020

Reportagens

Brava poesia brasileira potiguar em 2020 - parte 1

No ano em que quase tudo foi perdido, a poesia poti resiste e enfrenta os tempos atuais

26 de dezembro de 2020

Por Alexandre Alves | colaborou: Cinthia Lopes

    Se o ano de 2020 foi um verdadeiro desmonte da vida das pessoas, a poesia já praticava como lidar com isso há milênios com toda sua variada escrita sobre a experiência humana e toda sua carga de sensações, sentimentos, emoções e descrições sobre o que é a vida. Não à toa, os poetas resistem e enfrentam este tempo tão difícil de encarar, expondo sua produção em um ano que as editoras brasileiras ficaram quase estagnadas em plena pandemia.
    Nas plagas norte-rio-grandenses, a poesia sempre foi uma referência cultural com nomes como Nísia Floresta, Auta de Souza, Jorge Fernandes, Palmyra Wanderley, Zila Mamede, Nei Leandro de Castro, Myriam Coeli, Luís Carlos Guimarães – entre muitos outros – e toda uma safra contemporânea que aqui se iniciou nos anos de 1970 com a Poesia Marginal (Carlos Gurgel, João Batista de Morais Neto, Antonio Ronaldo) e cresceria nas décadas seguintes com a explosão da ala feminina local (Marize Castro, Diva Cunha, Iracema Macedo, Carmem Vasconcelos), chegando até os múltiplos representantes dos anos 2000, caso de Eveline Sin (aka “Sinhá”), Ada Lima, Márcio Simões e Victor H. Azevedo, entre tantos nomes.
    Em um ano no qual a prosa praticamente desapareceu na terra de Câmara Cascudo, mesmo com todas as dificuldades de distribuição e lançamento (os que existiram foram todos de forma virtual), a brava poesia brasileira potiguar contemporânea – cujo epicentro parece continuar nas urbes de Natal e Mossoró – resiste chegando com novos livros, tanto dos mais experientes quanto da ala mais jovem. Eis aqui aqueles que não desistiram do ato poético, ignoraram (ainda bem!) as tumbas cibernéticas e ganharam vida no papel como uma forma de resistência tipicamente local, como assim sempre foi – e ainda é – a poesia e sua linguagem, desautomatizando este mundo caótico em prol do humano. 

1. THIAGO MEDEIROS, “Ardência” (2020, Offset, 68 p.)
Em seu terceiro livro, um dos agitadores culturais do evento “Insurgências poéticas” mostra traços poéticos bem próximos da tradição (são citados Zila Mamede, João Cabral, Manoel de Barros, Clarice Lispector, Caetano Veloso) ao longo de temas como amor, tempo, sexo e solidão, escritos quase todos no verso curto e de página única. O temário homoerótico surge presente em composições como “Não vejo a hora dessa festa acabar”, assim como os textos de imagens fragmentárias, fator bem presente na poesia contemporânea nacional, caso de poemas como “Oferenda” (era preciso temperar / com cacos de vidro e lixo / meu coração / para comer com os dentes). A obra se divide em seis sequências de poemas cuja presença de nomes da produção local (Zila Mamede, Regina Azevedo, Gessyka Santos) marca a ativa lírica da jovem geração potiguar.

2. KALLIANE AMORIM, “Peregrina” (2020, Sarau das Letras, 176 p.)
Nascida na pequenina Umarizal e radicada em Mossoró, a jovem lança seu quarto livro da poetisa mantendo a verve lírica influenciada por autoras com Cecília Meireles e Zila Mamede, mas desta vez também apresenta uma veia mística cristã – trechos da Bíblia pousam em várias epígrafes –, lembrando por vezes a poesia de Murilo Mendes em sua fase mais religiosa. Desde o título da obra e dos poemas (“Mística”, “Sagrado”, “Catedral”, “Comunhão”), Kalliane carrega nos versos a memória da brevidade dos fatos e seres nas mais de três dezenas de composições do livro. Nele, a jovem se sobressai quando expõe seu leve surrealismo em poemas como “Harmonia” (A vida é uma concha nacarada / que o mar entrega à praia: / revela a luz sua intimidade, / matizada, / auroras e ocasos). O livro também contém várias ilustrações do artista Nilton Xavier, todas mantendo claras relações temáticas com os poemas, cuja presença da natureza surge constante, um talhe já clássico.

3. JOÃO ANDRADE, “Estilhaços” (2020, Unilivreira, 140 páginas)
Autor de vários livros de poesia nos anos 2000 e também contista, o natalense volta com mais 101 (!) poemas em sua nova obra. Ao longo dos textos, as dualidades da vida surgem quase sempre no verso livre, como nos ecos de Poe em “Nunca mais” (Seguirei sozinho / acompanhado / de minhas metades) ou de “Meu grito são mudas (Tateando, entre espinhos / em busca de mim, / sou um jardineiro cego). O poeta apresenta suas composições entre o dístico e, em especial, no poema em monopágina, contendo uma lírica dilacerada pelas impressões interiorizadas e sobre o cotidiano, cujo recado do eu lírico surge bem nítido: “Procuro-me / nos estilhaços / do espírito”.  

4. ANCHELLA MONTE, “Haicais imperfeitos” (2020, Sarau das Letras, 78 p.)
A autora pioneira entre os poetas marginais (o primeiro livro dela é uma obra coletiva de 1976!) optou por escrever um livro de haicais, poemeto de três versos oriundo do Japão, mas já tropicalizado desde o nascimento do Modernismo brasileiro em 1922. Entre a rima trazida por Guilherme de Almeida e o haicai já liberto dela, a poetisa marca seus versos, aqui e ali aparecendo dois tercetos (ou, como sugere o título, um “haicai imperfeito”, dobrado). Entre as dezenas de textos trazidos em sete sequências, o cenário local surge com esmero (Movem-se as dunas. / Lagunas entre elas, a língua / do lagarto lambe o tempo) e a tradição oriental das imagens naturais se mistura aos ares urbanos (A rua espelhada / de água vê a chuva / partindo de madrugada).