TL visita os lançamentos da lírica potiguar neste começo de 2021

Agenda Cultural

Brava poesia brasileira potiguar - Parte 2

Breves comentários sobre lançamentos de Marize Castro, Michelle Ferret, Dácio Galvão e Alexandre Alves

12 de janeiro de 2021

Cinthia Lopes

com Alexandre Alves

Seguindo aqui na lista dos livros lançados entre a múltipla produção de poetas potiguares, chama a atenção o diversificado semblante da lírica contemporânea local, igualmente no mesmo trajeto da poesia nacional, de forma geral. Existe uma tendência entre misturar elementos que outrora eram de vanguarda durante o Modernismo (o verso livre e o poema curto ou curtíssimo à frente, a mescla de linguagem coloquial e culta) e aquelas características que até hoje resvalam na lírica atual desde o Concretismo e a Poesia Marginal, não por acaso, ambos herdeiros dos modernos.

Este é o caso da disposição em espaços diferentes impressos na página vindos da Poesia Concreta ou a busca pelos detalhes excessivos do cotidiano na chamada “Geração Mimeógrafo”, que tanto marcou as gerações de 1970 e 1980. Quem faz a diferença nesta situação da safra dos anos 2000 pode ser muito bem o leitor, cuja experiência em ler poesia precisa atravessar a distinção entre o joio e o trigo, entre os repetidores e aqueles com mais personalidade, tópicos herdados da liberdade de expressão nascida com os modernos de 1922 (que, em breve, completarão 100 anos).

Em 2020, o ano mais atípico na recente história do país (os motivos pandêmicos são mais que óbvios), poetas e leitores tiveram muitos contatos virtuais nas incansáveis – e também cansativas – transmissões “live”, porém raro contato com o objeto básico da Literatura: o livro. Eis aqui mais exemplos da brava poesia brasileira potiguar entre o final de 2020 e começo de 2021.

1. MARIZE CASTRO, “Jorro” (2020, Editora Una, 64 páginas)

Um dos nomes mais expressivos da lírica contemporânea potiguar desde a década de 1980 aparece aqui com um texto (aparentemente) único, pois não há divisão com títulos dos poemas e o sumário inexiste, ao contrário das obras anteriores da natalense. Ou seja, tem o semblante de um “poemão”, mas que pode muito bem ser lido em sugestivas partes, como poemas isolados. Literalmente, o “jorro” lírico castriano atravessa as obsessões corporais – “Sim e sim: amar com o mesmo amor / – nossa benção e nosso anátema – / tudo suave e ácido, cintilação e sombra” – e metafísicas, como nos versos “Depois procurar o céu e exigir uma saída / para este país de sol e morte” ou a indagativa linha de “Vida, vida: este cambaleante sussurro da aurora?”. Em outros trechos, ela retoma ideias e metáforas como a da fenda, do claustro e do abismo, já presentes em poemas anteriores dela, porém a marca de sua lírica já resiste tanto ao tempo como também aos novos temas, deixando o verso livre também como marca. Hora daquela coletânea para que novas gerações conheçam também suas obras anteriores, sem reedição desde a estreia com o marginal/jovial “Marrons crepons marfins” (1984). Onde achar: Livraria da Cooperativa Cultural Universitária (https://cooperativacultural.meusitenouol.com.br/)  e @marizecastro2812 

2. MICHELLE FERRET, “Febre” (2020, Selo Doburro, 80 páginas)

Michelle Ferret despontou no cenário jornalístico e literário publicando textos de alta sensibilidade. No jornalismo, trazia um jeito peculiar ao relatar o fato como quem partilha um poema. Ao longo da carreira acadêmica sua produção lírica ganhou corpo e agora ela entrega ao leitor o primeiro livro solo  “Febre”, uma seleção autoral burilada de dez anos pra cá. O livro ganha edição do selo Doburro por Daniel Minchoni, com prefácio de Thiago Medeiros e orelha de Eveline Sin.

Entre o amor e a existência, os versos tecem linhas acerca de relacionamentos, solidão, política, e observações do cotidiano — alguns momentos, se prende aos detalhes aqui e ali: “E já sinto saudade Da casa morna /O ventre idem/As almofadas tortas /E o silêncio derretido Na manteiga da pipoca /Quer? Sempre/Mais uma Duas /Madrugada adentro ...” (“Das Memórias”). O livro nos cerca de poemas existenciais e inquietações do que estamos fazendo aqui neste mundo, com uma dinâmica semelhante ao delírio de uma febre que não passa. Adornado de metáforas sobre as catarses da vida, infância, dores, prisões, sabedorias; Michelle dá voz às lágrimas mas também aos sorrisos, bordando métricas solares em suas palavras: “De frente pro mar Me infinito/ Os olhos não dobram esquinas/Escorrem/ Perdem de vista o fim/ E podem vislumbrar Recomeços. De frente pro mundo/ Oceano/ Retiro toda a areia /Sou vento/ Pequena Na imensidão...” (“Boa Vista”). “Febre” nos faz parar o frenesi a observar o céu assim como as rachaduras da vida, nesse ir e vir de quase fim do mundo de um ano febril, cheio de significados profundos da natureza e desse espaço que chamamos de terra. Onde: www.selodoburro.com.br | @ferretmichelle | @DoBurro 

3. DÁCIO GALVÃO, “Poética geral” (2020, Sebo Vermelho/Projeto Nação Potiguar, 150 páginas)

O autor de “Blues repartido” (1982) e de “Palavras palavras palavras” (1998) retoma sua produção após enveredar pela poesia cantada/falada na trilogia em forma de CD-livro “Poemúsica”. Como o título aponta, há um passeio por uma versátil produção, indo do texto mais visual ao verso livre ou rimado (há até um soneto!). Dividido em seis “Movimentos”, apenas o segundo e o sexto são prioritariamente visuais, clara herança do Concretismo. No quarto movimento (chamado de “Feira romântica”) e no seguinte, surge uma lírica que funde elementos de uma brasilidade vinda de Câmara Cascudo (sim, ele escreveu poemas!) e Jorge Fernandes, convivendo bem com uma trilha também pela lírica convencional, incluindo poemas musicados/cantados por figuras da MPB (Tom Zé, Arrigo Barnabé, Geraldo Azevedo, entre outros) e da turma local (DuSolto, Grafith, Babal, Alexandre Atmarama). Realmente, o autor une diversas linguagens na obra em prol de “Inscrever / Do poema a poesia / [...] / No texto desabo fonemas / E arbítrios / Tateando signos” (trecho do poema “Escrito”). Onde: @daciogalvao | Sebo Vermelho (av. Rio Branco)  www.sebovermelho.com.br 

4. ALEXANDRE ALVES, “Ossos da urbe” (2020, Sol Negro, 52 páginas)

Em sua estreia lírica, o autor já experiente na crítica literária criou poemas cujo centro passa pela figuração da cidade e suas feições, sem preocupação de citar geograficamente esta ou aquela cidade. Influenciado – por vezes, em excesso – pelo cânone brasileiro de nomes como Ferreira Gullar e Drummond, além de contemporâneos como Pádua Fernandes ou o poti-cearense Leontino Filho (vestígios da obra “Cidade íntima”, de 1987, são perceptíveis na curteza dos versos), os quase 40 poemas acabam adquirindo uma aura negativa e pessimista sobre a tal urbe, enclausurada entre mendigos “na digestão de fomes e pedras” ou “de prédios alimentando / as doenças do mundo”. O estilo cinematográfico e fragmentado nos oferece cenas inventadas e surpreendentes, conforme ressalta o prefácio de Márcio Simões e acrescento aqui: “o animal morto era só presságio/ só restava a camurça e os insetos sobre a fruta do corpo/ o enterro se deu no asfalto/não havia flores furando a paisagem/sua última prece sequer foi ouvida” (linha do equador). Há preocupação ecológica numa espécie de neorealismo-ambiental, caso da abertura com “Deserta retina” (redesenhem os mapas / onde houver azul nestas águas / eis a podridão / com sobras coloridas de escuro) ou no nauseante “Ossos covardes” (peixes comendo vidro / não são mais um sonho). Quem procura aqui poesia emotiva, passe longe, mas a seção de 10 haicais ao final é menos tensa, mas mantendo a ironia, como em “No labirinto”: “não restarão heróis / apenas nós / cegos”. No geral, sobrou até estilo, mas faltou um pouco mais de carne nesse raio-x urbano. O livro obteve o 2º lugar no Prêmio Othoniel Menezes de Poesia 2019. Onde: @Solnegroeditora |  @jazibande