Lembrar para além das vias da memória | Foto: Freepik
Colunas
Cada vez que ela abria o álbum de recordação, seja de quem fosse, tirava o pequeno ramo do envelope e dizia: esse aqui é o seu
28 de maio de 2024
Ítalo de Melo Ramalho
Minha mãe faleceu em 19 de maio último. Mas, muito antes desse fato, contarei outro que me parece ser comum entre as famílias. Para não sair da temática capilar, como o título sugere, digo que a minha genitora colecionou pequenos cachos das suas 3 crias. E aqueles fios, juntamente com os cordões umbilicais também guardados, habitam o universo das nossas vidas ainda em continuidade.
Cada vez que ela abria o álbum de recordação, seja de quem fosse, tirava o pequeno ramo do envelope e dizia: esse aqui é o seu. Eu ficava encantado com aquilo e aproveitava para interrogá-la sobre coisas de que não sabia. E ela viajava comigo, e quando não tinha resposta para as perguntas, eu ficava puto: mainha, como a senhora pode esquecer isso? E ela sorria!
Outra curiosidade era que tudo, absolutamente tudo, estava anotado como sendo uma agenda. Replicava que o motivo para tal cuidado era que quando crescêssemos não pairasse dúvida sobre o registro daquela foto: aniversário de fulano; carnaval de mil novecentos e tanto; encerramento do ano letivo; primeira comunhão. E assim seguia. No meu álbum, em especial, as fotografias deixariam de ser colecionadas quando ultrapassei o limite dos 15 ou 16 anos. Já não tinha ânimo para tais registros e acredito que minha mãe entendia o meu instante adolescente. De qualquer modo, todas as vezes que queríamos voltar ao passado, o álbum era quem primeiro nos socorria.
É claro que as lembranças das cidades em que moramos, as casas que habitamos, as inúmeras situações vivenciadas, nem sempre estarão em outro local senão na nossa memória. Então, a memória, seja qual fosse, é uma condição tipicamente biológica do ser humano. E sendo assim, é possível que um dia venha a falhar: e de fato falhou!
Mas antes, desfrutamos de muita coisa boa. Principalmente de situações das quais só a mesa da cozinha é testemunha. Sentar à mesa com ela era demasiadamente interessante. A forma como preparava os pratos indicava o gosto e o lugar de cada cria. Uma xícara maior para um, prato fundo para outra, feijão, arroz, farofa, verdura, legume, carne, tapioca, bolo, pamonha, canjica, pão e queijo para todos. Aquela ritualística dava muito mais sentido ao mundo do que propriamente alimentava o corpo.
Ela sabia construir as coisas. Penso que as suas relações se davam primordialmente pelo afeto. Depois que ela dormiu para sempre, me peguei pensando em quais imagens poderiam sintetizá-la. Encontrei duas palavras que a traduzem: humanidade e simplicidade. Não por acaso, minhas irmãs souberam de fatos narrados pelas amigas que confirmam e autenticam essas duas qualidades.
Quando a memória começou a falhar eu dizia: mainha, não se preocupe, se a senhora esquecer estarei aqui para lembrá-la. E a memória falhava cada vez mais. E as histórias se repetiam duas, três e até antes do sono. No outro dia, a mesma coisa. E quando estava em Natal, procurava lembrá-la terminando a história esquecida. E assim seguiu. A minha vontade era reconstruir uma nova memória a partir do que já sabia e lembrava. Desde de Odirisseta, sua boneca de criança, a Brinquedo, jumento de estimação. Queria promover um milagre como o que ela promoveu em mim. Queria dar o mínimo de saúde para que ela não precisasse estar enfurnada por 25 dias no hospital. Mas não deu. Ela foi.
Só me restou sugerir às minhas irmãs que cortássemos um pequeno cacho do cabelo de mainha e dividíssemos entre nós. Assim, em vez de lembrar unicamente pelas vias da memória, lembraríamos também pelos cachos que tantas vezes tocamos.
Por que Noosfera? Essa categoria criada por Teilhard de Chardin em seu livro “O fenômeno humano”, há muito vem me provocando. Chardin parte do princípio que após a constatação científica da existência da atmosfera e da biosfera, sendo, a primeira, a camada de gases que envolve todo o planeta, e a segunda, o espaço onde se concentra os ecossistemas e, consequentemente, os seres vivos, faltava explicação para a existência do mundo das ideias. Por esse motivo, me aproprio do nome (Noosfera) para dar título a coluna que buscarei desenvolver no Típico Local. E convido a todos/as para uma viagem sobre as grandezas e as misérias do pensamento humano. Dessa forma, conseguiremos alimentar coletivamente a nossa Noosfera.
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