Caetano bastava fazer o que sempre fez: cantar. Mas vai além, sublinha as palavras com o olhar

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CAETANO AOS 80: UM SHOW!

A data dos oitenta anos é muito simbólica para o ser humano. Nessa idade, já vivemos a maioria das experiências que estão ao nosso alcance

11 de agosto de 2022

Clotilde Tavares

Eu não poderia falar de outra coisa nesta semana a não ser dos oitenta anos de Caetano Veloso. E de Gilberto Gil. E de Paulinho da Viola. E de Milton Nascimento – e de quem mais? Chico? Não, Chico só tem 78 anos. Chico é broto.

Além de Caetano, tem mais gente que neste ano da graça de 2022 comemora seus oitenta anos. A escritora Isabel Allende, a deputada federal Benedita da Silva, a atriz Arlete Sales, o escritor Pedro Bandeira e Indiana Jones, ou melhor, Harrison Ford. Também estão na lista o eterno beatle Paul McCartney, a deusa das novelas Susana Vieira, o cineasta Martin Scorsese, e aqui mais perto de nós, na vizinha Paraíba, a escritora Maria Valéria Rezende – premiada com o Jabuti – e a nossa glória maior, a atriz Zezita Matos. 

A data dos oitenta anos é muito simbólica para o ser humano. Nessa idade, já vivemos a maioria das experiências que estão ao nosso alcance e já conseguimos extrair delas os seus significados, que nos preparam para a transcendência que se aproxima. Os desejos, emoções e sentimentos, antes intensos e urgentes, adquirem uma nova qualidade, tornam-se mais límpidos, mais refinados. Apuramos o paladar estético, afetivo e relacional. É aos oitenta anos que começamos a completar nossa obra, com nossos bisnetos – ou trinetos – já caminhando e desenhando sua vida pela face do planeta. Não só nossos herdeiros de sangue, filhos dos filhos dos nossos filhos, mas também os herdeiros colaterais concebidos na amizade, no afeto e na transmissão do conhecimento.

Três anos e meio a menos que Chico Buarque e um ano e meio a menos que Maria Bethânia, a caminho dos 80, eu continuo trabalhando, e cada vez mais na companhia de filhos e netos daqueles com quem trabalhei há 40 anos. Também tenho no currículo um trabalho de que me orgulho pelo simples fato de estar junto com meu próprio neto na ficha técnica, o motion designer @marcelotduken, ele colaborando na equipe de animação e eu dando consultoria na área de cordel: é a websérie As Aventuras de Nina e Xilo, de Felipe Campos Chaves.

Mas se tem tanta gente “fazendo” oitenta anos, porque é que as maiores comemorações sempre são dedicadas aos nossos artistas, nossos cantores? 

Lembramos mais dos artistas porque eles são a antena da raça, o captador parabólico que sintoniza os sentimentos da humanidade. Os artistas da canção são nossos trovadores, nossos menestréis, nossos contadores de romances cantados ao som de tambores, alaúdes ou guitarras, desde o início dos tempos. São eles que nos fazem parar um pouco, deixar a música nos envolver, largar o que estamos fazendo por dois minutos e prestar atenção. O artista diz “... então cada paisano e cada capataz / Com sua burrice fará jorrar sangue demais / Nos pantanais, nas cidades / Caatingas e nos gerais...” e a gente ouve, reflete e concorda: “É isso mesmo, desse jeitinho.”

No domingo de noite, renunciei a outras programações para ver o show com que o Brasil comemorou os oitenta anos de Caetano Veloso. Sentei na poltrona favorita, com minha coca zero, e fui sendo conduzida pelas mesmas canções que escuto, algumas há quase sessenta anos, porque eu vi tudo isso acontecer do início, uma vez que sou apenas cinco anos mais nova do que o muso.

“Caetano ainda dança! E dança tão lindo!” – comentam todos que o viram sambando com Bethânia e Moreno, um de cada lado, ritmo e segurança, cinco minutos de puro deslumbre e encantamento. E nem precisava dançar. O nosso muso não é bailarino. Mas bailou lindamente, e ainda ensaiou a umbigada da roda de samba ou coco que, felizmente, não desequilibrou o conjunto. Caetano bastava fazer o que sempre fez: cantar. Mas ele vai além do canto. Por isso diz as palavras cantadas sublinhando-as com o olhar que sempre tem um tom de preste atenção, criatura, no que estou falando, preste atenção nas palavras, elas são importantes, elas trazem o recado, a dica, o plá, o choro, o riso, a declaração de amor, o grito de guerra, tudo isso acompanhado pelo falsete perfeito que legou aos filhos – ah, os filhos de Caetano merecem um texto à parte! A genialidade do pai refletida em cores diferentes no arco-íris desta prole assombrosa de tanto gênio e beleza. Um suave e manemolente, outro sério e diferentão, o terceiro – ai meu deusinho, o terceiro! – parece um toureiro, um gitano, um filho de Andaluzia..

Porque um show de verdade é isso: estão aquelas quatro ou cinco pessoas lá, cantando e tocando, e milhões de gentes assistindo; mas o que eu sinto ali na frente, só eu sinto. Cada um sente uma coisa, mas só eu sinto o que sinto, só eu entre milhões sei onde o meu sapato aperta, e quando aperta, dói. Deixo escrito num pedacinho de papel ali do lado o fone do samu, porque pode ser que doa demais, e eu não aguente. Fico aqui, com as veias da saudade que vão se intumescendo, uma a uma, mas devagarinho, suavemente, doendo de leve, ameaçando rebentar, e quem sabe a dor vai daqui a pouco me obrigar a chamar a ambulância, com seus socorristas vestidos de cor-de-vinho. A dor dói um pouquinho, só um pouquinho. Respiro e cantarolo junto, a dor continua, quase gostosa, suave, e um ventinho que vem não sei de onde agita o papel com o telefone do samu, que rola para debaixo da mesa. As veias enchem, mas aguentam: elas são fortes. Um sorriso, o canto e um passo de coco se misturam no meu corpo. A dor pode ser boa.

Ai, Caetano!

Para cada amor que eu tive, tem uma trilha sua. Então continue compondo porque eu quero, eu preciso continuar amando. 



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Foto: Filipe Costa | AG. Brasil