Vivendo na Alemanha, autora diz que olhar para o Brasil “de fora” teve um efeito positivo para si

Reportagens

Carla Bessa: "Cada livro impõe o seu próprio procedimento de feitura"

Autora de "Urubus", obra vencedora da categoria Contos do Jabuti, fala sobre a corrente invisível que une suas histórias e personagens

24 de janeiro de 2023

Cefas Carvalho

Natural de Niterói, município do Estado do Rio de Janeiro, Carla Bessa é escritora e tradutora, tendo sido diretora e atriz de teatro (estudou na UniRio e formou-se como atriz na Casa das Artes de Laranjeiras) e hoje mora na Alemanha (para onde foi nos anos 1990), tendo se  naturalizado alemã. Estreou como escritora em 2017 com o livro de contos "Aí Eu Fiquei Sem Esse Filho", publicado pela editora Oito e Meio. Em 2019, lançou pela editora Confraria do Vento o livro "Urubus", que reuniu 18 contos interligados e que venceu o Prêmio Jabuti de 2020 como melhor livro de contos. Com esse livro também ficou em segundo lugar no Prêmio Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional. Em 2021, publicou a novela "Minha Murilo" pela editora Urutau. O livro ficou entre os semifinalistas do Prêmio Mix-Brasil do mesmo ano. Já em 2022 publicou outro livro de contos, o elogiado "odas uma". Atualmente, faz tradução de literatura contemporânea alemã para as editoras WMF Martins Fontes e Estação Liberdade. Nesa enrevisa, Carla Bessa falou sobre udo isso e ainda temas como mercado editorial, espaço para escritores e pandemia. Confira:


Seu livro de contos "Urubus" foi elogiado e premiado (inclusive com um Jabuti). Como foi o processo de escrita e publicação deste livro e como executou a dinâmica dos contos interligados?

“Urubus” é o meu segundo livro e dá continuidade a reflexões em torno das muitas formas de violência, já iniciadas na minha primeira coletânea de contos, “Aí eu fiquei sem esse filho”. Porém, enquanto o primeiro livro aborda as grandes perdas, as mortes e assassinatos no Rio de Janeiro, “Urubus” trata das pequenas tragédias cotidianas, do cotidiano em si enquanto tragédia na vida de mulheres e homens ordinários. As personagens são figuras que vivem à margem da sociedade como os meninos de rua, os catadores de lixo, engraxates, idosos, motoristas de ônibus, prostitutas, pessoas cujas vidas muitas vezes se resume à mera sobrevivência e que, ainda assim, encontram brechas nesse dia-a-dia embrutecido para os seus sonhos e devaneios.

Ao escrever suas histórias, eu me dei conta de que o fio que liga as vidas dessas personagens não é só a sua convivência no mesmo espaço geográfico – a cidade do Rio de Janeiro –, mas que elas também estão unidas por um encadeamento social e econômico. Trata-se de uma corrente invisível, gerada por uma política de mercado baseada no crescimento irrefreável e a todo preço, uma política que, por exemplo, produz cada vez mais lixo de um lado e, do outro, faz com que pessoas sejam obrigadas a viver no meio desse mesmo lixo. Foi da observação dessas cadeias de produção, consumo e lixo que desenvolvi o primeiro conto, situado num lixão. Depois, seguindo esse fluxo, nasceram as outras histórias, que foram se interligando quase naturalmente. Essa ideia de que tudo está conectado, de que tudo o que tiramos aqui, vai faltar ali, as relações entre causa e efeito na economia do mercado e suas consequências tanto para a natureza como para as esferas sociais, é uma coisa que me intriga e acaba indo para a minha literatura.

O seu livro posterior, a novela “Minha Murilo”, foi lançado em pleno período de pandemia e confinamento, ainda na fase pré-vacinas. Como aqueles tempos impactaram sua literatura e seu consumo cultural? E como foi o processo de escrita dessa novela?

Claro que a pandemia foi um momento muito difícil para todos nós, pois nos mostrou de supetão que a nossa estabilidade não é tão estável assim, a “normalidade” é algo muito mais frágil do que imaginamos. Nesse sentido – e sem que tenha sido intencional, pois eu já estava com a ideia para esse livro – “Minha Murilo” acabou se encaixando como uma luva no quadro pandêmico porque é uma novela que questiona exatamente os valores e comportamentos tidos como “normais”. O livro conta a história de uma travesti sequestrada que inicia uma relação ambivalente com o seu sequestrador e, por baixo da superfície do enredo, eu procuro levantar questões em relação à nossa tendência a pensar o mundo com base em conceitos binários como vítima/algoz, homem/mulher, bem/mal, feio/bonito etc. Eu acredito que a tendência ao maniqueísmo – e não esqueçamos que esse termo foi forjado por uma doutrina religiosa – não só está dividindo as sociedades, como tira qualquer possibilidade de aceitação da ambivalência inerente ao pensamento e às relações humanas.  

Quanto ao processo de escrita, eu acredito que cada livro impõe o seu próprio procedimento de feitura, o conteúdo exige uma determinada forma e vice-versa. Assim, a escrita de “Minha Murilo” foi bem diferente dos meus outros livros porque nessa novela eu quis colocar o foco mais no enredo, na história mesmo, do que na linguagem, indo na contramão do que tinha feito até ali. Foi interessante, eu consegui inclusive escrever bem mais rápido do que de costume, mas depois disso, voltei meu interesse para os experimentalismos de linguagem porque esse é o tipo de literatura que mais me instiga e impulsiona a minha intuição.

Quanto ao meu consumo cultural, nesse ponto a pandemia me impingiu uma reclusão que acabou levando a um mergulho interessante na leitura e nos estudos. Acho que fiz bom proveito do confinamento, li e escrevi bastante. Mas é claro que isso só foi possível porque eu vivo num país, a Alemanha, que deu um suporte forte aos artistas naquele momento difícil, houve vários incentivos específicos para que pudéssemos passar o isolamento explorando e desenvolvendo nossos projetos. Eu me sinto grata e privilegiada de ter acesso a essas coisas aqui e desejo muito uma política cultural parecida para os colegas no Brasil.


Como essa moradia em outro continente e uma visão externa do Brasil afetaram sua literatura e sua visão de realidade?

Tem uma palavra em alemão, a “Fernweh”, que não tem um equivalente literal no português, mas poderia ser traduzida como uma espécie de “saudade da distância” ou “saudade do que não se conhece”. Eu acho que ela define bem um anseio que eu sempre tive. Ainda criança eu já vivia fortemente o desejo de me deslocar, viajar, trocar de contexto cultural para trocar a mim mesma, para me reinventar. Eu acho que isso vem da vontade humana de confrontação com o outro para definir a si próprio a partir do olhar alheio. Para mim, o espelhamento com o estrangeiro foi uma forma de definir e moldar a minha identidade. Sendo que eu não entendo identidade como um conceito inerte, não é uma constante, no sentido matemático do termo: uma grandeza que se acredita fixa e invariável, mas algo maleável e transformável.

Então, olhar para o Brasil “de fora” teve um efeito muito positivo para mim, pois eu pude desassociar o meu ser (ou meus seres) da cultura da qual eu venho. E esse movimento me ajudou a observar melhor essa cultura, como que através de uma lente mais aberta. Foi a visão mais total, inclusive, que me possibilitou escrever a literatura que eu escrevo, pois me fez olhar com mais objetividade e cuidado, às vezes até de forma crua, às vezes com carinho, para essas figuras que habitam as lembranças dos anos que vivi no Brasil, e que são também os fantasmas da minha infância. Acho que nos meus primeiros livros, que tratam da vida e da violência no Rio de Janeiro, eu fiz uma espécie de exorcismo pessoal mesmo, através da ficção.


Você também faz tradução de literatura contemporânea alemã para editoras brasileiras. Como é esse processo e quais os riscos em se traduzir literatura?

Tem uma frase do Max Frisch, autor alemão contemporâneo a quem tive o prazer de traduzir, na qual ele diz: ‘Escrever significa: ler a si mesmo’. Eu faria uma adaptação livre dessa frase para: traduzir significa ler a si mesmo – nas palavras do outro. Tem a ver com o mesmo movimento em direção ao outro de que estava falando na resposta anterior. Quando comecei a traduzir, eu redescobri o português e esse foi um processo de dar forma a minha própria língua através do idioma estrangeiro. E com “língua”, não quero dizer somente a língua materna, mas num sentido mais amplo, a minha própria voz. Claro que o desafio então é manter o balanço entre o próprio e alheio, entre apropriação e reverência. E há o perigo de se encantar demais com a própria voz e não ouvir o outro e vice-versa. Traduzir é um eterno exercício de alteridade.


No ano de 2022 você lançou outro livro de contos, o "Todas uma". Como foi esse processo? Também foi pensado conceitualmente, como "Urubus"?

No meu novo livro, “Todas uma”, que saiu também pela Confraria do vento, os contos também são interligados, ainda que de uma maneira um pouco diferente da de “Urubus”. Em “Todas uma”, as personagens, todas mulheres, estão enredadas pela experiência comum de opressão numa sociedade ainda patriarcal. As histórias individuais são desdobramentos de uma narrativa coletiva que conta das muitas formas de desaparecimento da mulher. Eu quis, conscientemente, tocar num tema que é um dos últimos tabus da nossa sociedade: o sentimento de infelicidade diante do papel de mãe e a rejeição à maternidade. A ideia nasceu depois da criação do primeiro conto, “No domingo em que eu morri”, que, ainda com o título de “Lívia e o vão”, ganhou o 1° lugar no Concurso de Contos Anna Maria Martins, da União Brasileira de Escritores. Nele, eu tentei processar de maneira ficcional, através da metáfora da morte (em vida), um fenômeno que eu vinha observando em mulheres da minha idade, amigas minhas, tanto do Brasil quanto da Europa: a sensação de apagamento de sua feminilidade, do seu ser mulher, a partir do momento em que se tornam esposas e mães, sobretudo, a partir do momento em que se tornam mães. Este é um fenômeno que atinge mulheres de todas as classes sociais e parece ser algo inerente à estrutura da sociedade patriarcal. Daí vem o título, “Todas uma”, que reflete a ideia de que os motivos e as vozes diferem, mas a história contada é a mesma. É claro que nós, mulheres, já alcançamos muitas melhoras, temos direitos garantidos por lei, mas ainda há muito o que fazer. Porque uma coisa são os avanços jurídicos e sociais, outra coisa são os conceitos e preconceitos arraigados nas cabeças das pessoas.  

Como analisa o mercado literário em relação à literatura escrita por mulheres? O espaço para escritoras é o mesmo dado aos escritores homens?

Tem esse teste simples propagado por várias escritoras na rede: “Se você tem dúvidas em relação à desigualdade de gênero no mercado literário, vá até a sua estante e conte os livros escritos por mulheres e os livros escritos por homens.” Eu me dei de fato ao trabalho de listar uma pequena parte da minha biblioteca, apenas duas curtas prateleiras, e veja: contei 36 nomes de autores e 19 de autoras. E isso porque eu sou mulher, escritora e estou consciente dessas coisas! Então, os números falam uma língua bem clara. Outro exemplo: em 2014 a editora Dublinense publicou uma antologia que listou 101 autores contemporâneos essenciais, mas entre eles, apenas 14 eram mulheres!

São poucas as pesquisas nessa área.  O livro “Literatura brasileira contemporânea – um território contestado”, da escritora Regina Dalcastagné, traça um bom panorama da situação. Nele, a autora examinou 258 obras publicadas entre 1990 e 2004 pelas maiores editoras literárias do Brasil na época. A pesquisa mostrou que 72% dos autores dos livros eram homens, brancos, de classe média e moradores do Rio de Janeiro ou São Paulo. Também nos prêmios as mulheres não estão igualmente representadas. Até 2019, no prêmio Camões de Literatura, concedido a escritores do Brasil e de Portugal, apenas 6 mulheres foram condecoradas em 30 anos da premiação. E o prêmio Nobel da literatura até hoje já foi concedido a 102 homens e 17 mulheres!

E mais flagrante ainda deve ser a disparidade na chefia das editoras. Eu não tenho dados oficiais, mas somente entre as editoras que conheço, grandes e pequenas, no Brasil e Alemanha, vejo pouquíssimas mulheres em cargos de chefia.

No entanto, já vejo mudanças. Não sem muita luta, mas estão acontecendo. No mesmo ano da famigerada lista da Dublinense, em 2014, a ilustradora e jornalista britânica Joanna Wash criou o #ReadWomen, que alcançou diversos países, inclusive o Brasil, onde foi criado o #LeiaMulheres. Os prêmios desde então também estão focando mais na diversidade. Isso deve nos servir de motivação para continuar brigando pelos nossos direitos.


Quais suas expectativas e projetos literários para 2023?

Com a mudança do governo no Brasil, tenho esperança de que a vida econômica, social, política e cultural melhore. É urgente reconstruir o que derrubaram nos últimos anos, em várias áreas. Quanto aos meus planos pessoais, tenho um projeto já bem avançado, um romance em alemão, mas que agora quero deixar “respirar” por um tempo. Acho essas pausas importantes para tomar uma certa distância da própria escrita e poder avaliar o trabalho com mais sobriedade antes de retomar. Não pretendo publicar nada de minha autoria esse ano. Estou em vias de assinar um novo contrato para a tradução de uma obra que me apaixona e quero me dedicar a isso nos próximos meses. Também pretendo aproveitar a lacuna para ler mais poesia e estudar com atenção autoras e autores que me instigam e inspiram.