Retrato do escritor Antônio Tabucchi, ilustração de Carlos Peixoto

Reportagens

Carlos Peixoto retorna aos poemas de três versos em 29 hai-kais transitivos e um manifesto direto

Dois anos depois de "Desejo de ser inútil", escritor e jornalista apresenta textos inéditos e "alguns rabiscos"

28 de julho de 2020

Quem não viu o fim do mundo na pandemia do Covid-19 e teve que se submeter ao isolamento social, tratou de aproveitar o excesso de "tempo livre". O jornalista e escritor Carlos Peixoto aproveitou para reler romances, poetas e ensaios da sua lista de preferidos. Também esteve estudando um pouco, desenhando e reescrevendo alguns textos que, depois de 120 dias, ainda não considera acabados.

Mesmo assim, nos presenteia com novos exemplares poéticos aqui reunidos como “29 hai-kais transitivos e um manifesto direto”. Embora não sejam de agora, os textos foram escritos após o lançamento do livrinho amarelo " Desejo de Ser Inútil”, seu primeiro experimento no formato hai-kais lançado em 2018, pela editora Caravela Selo Cultural. 

Carlos Peixoto em visita ao museu Casa das Rosas: Litogravura de William Blake numa reinterpretação de The Tyger

“Não li, propositadamente, nada de novo ou relacionado com a pandemia e as polêmicas que a cercam. Do que vi e ouvi, tudo me pareceu repetição dos fatos narrados em ‘Diário de um ano da peste’, de Daniel Defoe, ou em ‘ Peste’, de Camus. Com a desvantagem dos nossos personagens serem mais pobres e estúpidos”, comentou o autor.

Mas os textos tem alguma referência com o momento atual? Ele responde que “a única referência possível - e indireta - ao caos da pandemia é a divisão arbitrária dos hai-kais em grupos identificáveis com o inverno, a primavera, o verão e o outono. Acho que seria bem útil e construtivo ter em mente que o Covid-19 é uma catástrofe, mas fatos diminutos da vida também têm potencial para causar ou não estragos. É tudo parte do mesmo processo, do que vem e passa, marca e renova a existência, como as estações do ano.”   

Carlos Peixoto explica que alguns dos hai- kais são referências às paisagens/cenas de São Paulo, Florianopolis, Blumenau, Natal, Londres, Japão... lugares de recentes visitas reais ou imaginadas. Outros, são empréstimos de fragmentos/ideias poéticas que ficaram das releituras, “como explicito no Manifesto (com I will be patient if the world be wise, de Love’s Inability de Lawrence Durrell) ou lembranças incompletas de versos de um amigo poeta da adolescência que não sei por onde andam (o amigo e os versos), como em Cantiga de Amar.”

“Há os casos em que o poema é pura brincadeira, em torno de conceitos e símbolos que nos parecem tão caros que, em torno e sobre eles, se construíram valores socialmente definidores e mitos culturais relativistas. Deixo aos leitores a tarefa de identificar quais.”

Na mesma linha das releituras literárias, o escritor também exercita o traço, como por exemplo a ilustração que abre esta reportagem. "É uma tentativa de ilustrar o escritor italiano Antônio Tabucchi, tradutor de Pessoa e Drummond -  autor de vários livros, entre eles A mulher do Porto Pim, anotações de uma viagem ao arquipélago dos Açores", comentou. Confira:

29 hai-kais transitivos e um manifesto direto

Por Carlos Peixoto

INVERNO

1 - O tempo hipnotiza.

      Basta um riso, basta um aí...

      e a vida desliza.

 

2 - Voltei à rua

      onde na infância morei.

      Foi como ir à lua!

 

3 - Lua e maré cheias.

     Contemplo cada instante

     sentado na areia.

 

4 – Ó mundo, vasto e duro,

       és doce e acolhedor

       no meu canto de muro

 

5 - Mil véus

     escondem a cidade.

      Arranha-céus.

 

6 - Ontem à noite, dormi!

      Sobre meu telhado,

      o som de um baile.

PRIMAVERA

7 - Ato institucional:

     o amor entrará

     pelas janelas ensolaradas

 

8 – Passeio no jardim

      e os pardais meditam,

       saltitando

 

9 – Cantiga de amor.

      “Morto de gozo e posto

       na cova do teu umbigo”

 

10 - Sempre apressada

        a cidade atropela

        flores na calçada

 

11 - Lá vai a moça atenta!

       Num vaso, leva uma dádiva:

        pequena suculenta.

 

12 - Em Fukushima

       cerejeiras radioativas

       florescem na usina.

 

13- Cantiga de escárnio.

       “A Força vem do berço:

        gu gu, yoda da!”

 

14 - Doce eterno

       que me vem à língua.

       Idiomaterno.

 

VERÃO

 

15 - Nobre atitude

        é deitar-se e gozar do sol.

       Eis toda a virtude.

 

16 - Em casa, andas nua...

       e lá me importa

      o que vai pelas ruas!

 

17 - Não subestime:

        a sutileza de um gato,

        o define.

 

18 - Se ficas ou passas,

        alucinas minh’alma,

        e vejo brasas.

 

19 - Todo dia, cedinho,

        recarrego a alma

        com passarinhos.

 

20 - Na palavra lida,

       régua, compasso e peso

       medindo a vida.

 

21 - Vai, apressadinho!

        Cá fico, pasmo,

        e melhor sozinho.

 

22 - Aí que canseira!

        A vida inteligente

        é uma besteira.

 

OUTONO

 

23 - Tardes de maio,

       literal leve mente,

       como um ensaio.

 

24 – Cena angelical:

       folhas trêmulas urbanas

       na brisa matinal

 

25 - Pelas ruas da cidade,

         a alma cheia de sons,

         medo e saudade.

 

26 - No Soho, lembranças

        do calor, olhos de ressaca

         da Moura andaluza.

 

 

27 - Vai à tarde fria,

         no horizonte o sol...

         nada sabe. Arde!

 

28 - Terão um fim

        os sonhos sonhados?

        Trilha de Ho Chi Min.

 

29 – Em junho, o ipê floriu!

         Na esquina ao sol

         ainda era abril.

        

O MANIFESTO

 

         Serei calmo, se o mundo for galante.

         Serei cínico, se o mundo for cruel.

         Mas, isso é ser previsível!

         Serei eu mesmo.

         E o mundo que trate de me aceitar.