Em carta para uma certa Serena , poeta lamenta a migração dos verbos e das ideias. Foto Evaldo Gomes
Colunas
Vou mesmo é ficar quieto e conferir, em todos os amanheceres, se continuo no jogo e se ainda tenho os membros e o cérebro. O coração, não.
08 de junho de 2021
Lívio Oliveira
Natal, por esses dias de doismilium.
Minha amiga distante, Serena.
Eu te escrevo esta primeira carta. Tolere.
HÁ ALGO a consertar dentro de mim. Não quero acreditar ainda que as palavras fogem da peste e me abandonam só, aqui dentro do grande vazio, na plenitude das cicatrizes do dia. Fico observando o voo da migração dos verbos, tento pegar com a mão algum que me sirva. A dificuldade se amplia porque o não querer também é meu. Fico lento e fraco quarenta vezes numa semana. Mesmo assim, a minha aparência ainda diz que estou vivo, mesmo que eu nem acredite mais nisso. A comunicação, uma das razões de viver, é confusa, plastificada.
Todos estão por trás de máscaras e de telas e estou só. Repito isso: só! Não consigo me alegrar diante desse mundo artificial que a peste me exibiu. Sinto-me velho, sem planos, desbastando tarefas para poder realizar com menos erros as que sobram. Vou ficando, vou me arrastando no desejo que manca, nada sei mesmo sobre a ponte que me levará à Redinha ou a um cenário deserto, num outro mundo lá fora. Aliás, nem sei se ainda continuo dentro. É porque não me interesso mais por muita coisa. Nem por aqueles livros de capa colorida que coloquei ali, diante do meu olhar apavorado e disperso.
Eu, que acreditava que tudo no mundo era do meu interesse. Fico aqui, entre homens e mulheres que se espantam com as próprias superiores inteligências, enquanto eu me sinto desprovido de ideias e de ideais. Já me coloquei tantas metas, tantas mentiras, tantos medos. Vou mesmo é ficar quieto e conferir, em todos os amanheceres, se continuo no jogo e se ainda tenho os membros e o cérebro. O coração, não. Esse eu perdi na peste anterior, a do desamor, a da impaciência, a do desperdiçado sentimento. Acredito que foi em 18 do século passado.
Com ânsia e o desejo de reencontro no ano que vem.
L.O
*Os textos dessa carta e das que virão são e serão fictícios, a não ser que também nisso não se creia.
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