Entre livros e lugares de poesia

Colunas

Cartas postas no século pós-peste

Na estreia da coluna "Pelo Mundo", Jana Maia revisita sua travessia para um novo lugar e a pandemia entre livros e terapia (remota)

20 de outubro de 2021

Jana Maia 

São Paulo, 20 de Outubro de 2021

Prezados leitores e leitoras, e mamãe,

Será que a modéstia permite-me tal gracejo?

Parti há dois anos, antes da peste, lembro-me ainda, em saudosa memória, do lenço branco numa das mãos da minha amada mãe, a mão esquerda que porta seu anel de pedra lilás predileto, enxugando suas lágrimas, enquanto assistia minha partida no cais do porto, acenando com delicadeza sem poder imaginar quando estaria novamente em presença de sua única filha. Sinto-me grata a Deus, ou aos deuses, deusas, não sei qual a sua fé, por ter sobrevivido à febre, ao genocídio, quem sabe brevemente a sorte lançará seus dados e conseguirei pisar em solos potiguares? Anseio estar entre os meus, agora que sigo vacinada. 

Calma, eu não enlouqueci, afinal eu já estava completamente louca quando tudo isso começou, escrevo esta carta - afinal não é isso que Zuckerberg fez com todas as nossas informações “sigilosas” na última década, endereçou ao mudo tal qual cartas pessoais e as vendeu? - pois sinto ter pulado séculos sociais, sinto que virei chaves e mais chaves nos corredores da matrix, que troquei a pele ao roer meu próprio rabo numa verdadeira maratona intitulada “quarentena da mente”. 

Sendo assim, eu não poderia começar esta cartacoluna sem mencionar que dificilmente aquela que embarcou no navio descerá as inovadoras escadas da aeronave com as mesmas bagagens de madeira. 

Mas uma coisa é certa, apesar do tio Zucker ter vendido até o número do meu calçado, a tecnologia (e sigilosamente os ansiolíticos), apesar de tudo, e apesar também das dancinhas do Tik Tok, me ajudou a enfrentar esse momento um pouco mais próximo daqueles que amo e que estavam tão distantes. O entretenimento, a cultura remota, criando-se e recriando-se aos trancos e barrancos, sem o apoio necessário, me auxiliou como uma bóia, afinal era difícil não afogar na própria mente. 
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Entretanto, não só o futuro me deu a mão, preciso recitar odes à terapia (remota), e aos livros, no socorro desses, havia espaço suficiente para caber muitos, ouviu isso Rose? Neste filme Jack não se afogou. Em meu bote, bóia, tronco, âncora, chamem do que quiser, coube ainda levar Austen, Dickens, Conceição Evaristo, Djamila, e muitos outros e outras. Eu só poderia sofrer essa jornada com eles. Em muitos dias sombrios, de contagens infinitas, de silêncio caótico lá fora, de incertezas sobre o futuro, eu preferia me calar, calar minha mente e ouvi-los falar. 

O fato é que graças às vacinas estou aqui, estamos aqui, caro leitor e leitora, infelizmente com muito menos de nós, os chamados humanos, neste mundo. Estamos aos poucos de volta ao que nos trouxe até aqui, nosso contato social, que também é nosso contrato, nossas trocas, conversas, nossa humanidade, ou o que restou dela. São muitos cacos a juntar, estamos colando pecinha por pecinha mas certamente há objetos que após quebrados são impossíveis de juntar, perdem-se no espaço-tempo, retornam ao pó, nunca mais serão os mesmos e ficam para a história

Mamãe, sigo no processo de ressocialização, não é fácil, muitas vezes não suporto o barulho fora da minha casa, mas sigo tentando. Toda trabalhada na Coronavac, tenho ido bater perna atrás de novos mundos, novos locais, renasci da peste, nunca me foi tão necessário ver e saudar as descobertas da Paulicéia Melindrosa.

Sendo assim, venha me visitar, chame dona Rosa da rua abaixo, leia esta carta aos meu avós, renasça comigo, segue ao primo Tony, também amante das letras e brochuras, o meu guia das 5 livrarias que são o que se chama neste século de "tudo pra mim", acredito que vocês, meus leitores, realmente não devem perder, ao pousar em solos paulistanos.

Espero que tenham folgado em saber que vossa conterrânea, e filha amada, anda bem do lado de cá, embora ande já em posse de outros sapatos, afinal a moda mudou

Beijos carinhosos da filha, amiga, jornalista, e por que não, também indigesta,

Jana Maia

P.S.: Segue o guia, descrente, mas não por ordem de importância e sim de bem-querer, das minhas livrarias prediletas, para o primo Tony:

5 - Livraria Mandarina 
Tony, a Mandarina é uma belíssima e típica livraria de rua, uma casinha charmosa, aconchegante, com um acervo que faz gosto. Além disso, graças ao advento do nosso século, eles fazem entrega no mesmo dia, caso o comprador em questão more na capital de São Paulo.

@livraria_mandarina 


4 - Livraria Martins Fontes 
Essa não é localizada diretamente na rua, fica numa galeria enorme, situada na Avenida Paulista, de fácil acesso. A MF é uma preciosidade de livraria, muito bem colocada no mercado, não trata-se de um empreendimento de pequenos entusiastas, mas uma grande marca, assim como editora. Entretanto, apesar de não se enquadrar na categoria pequenas livrarias, é de extrema importância indicá-la pela diversidade de acervo literário, técnico e até mesmo escolar. O prédio é enorme, com dois andares de mezanino, sendo o último deles dedicado apenas a livros em promoções imperdíveis. 

Primo, a Martins Fontes é o lugar para encontrar. Encontrar o quê? Tudo.Tratei de abocanhar uma enciclopédia inovadora, toda ilustrada, de mapas. Certamente será uma mão na roda para o trabalho que estou desenvolvendo atualmente. 

@martinsfontespaulista

3 - Livraria da Tarde
Toninho, essa é linda, linda, linda, uma verdadeira casinha e de quebra é na rua, do jeitinho que amamos. A LT possui uma curadoria maravilhosa, que vai desde a livros de lançamento até novas edições belíssimas de clássicos que nos dão água na boca, você até se imagina saindo com a Odisséia em mãos para ler no metrô, tal qual um livro de bolso. 

Acontece que essa livraria abriu um pouco antes da pandemia começar, teve que fechar, resistiu ao caos sanitário/político e finalmente está aberta novamente, mais forte do que nunca. Como se não bastasse a beleza, curadoria ampla, o café delicioso que possuem, e o relaxamento que eles proporcionam no ambiente, você de quebra se apaixona pelo Lennon, o mister simpatia da casa, acho ideal você parar tudo que está fazendo e vir conhecê-lo. Investi num livro da Silvia Federici, não resisti.

@livrariadatarde 

2 - Livraria Ponta de Lança 
Devo dizer que voltar à vida pós-peste foi um verdadeiro alívio na alma, meu querido, logo que estava devidamente imunizada como manda a boa educação, corri para conhecer novos pontos literários e culinários, foi assim que, num dia chuvoso, dentro do automóvel, ouvi a propaganda da PL, de modo que prontamente adiantei-me a conhecê-la

A Ponta de Lança é uma das maiores preciosidades do mundo literário desta cidade, confesso. Recém aberta, sua especialidade são livros raros, e seu acervo não deixa a desejar aos mais exigentes, desde livros novos a edições usadas garimpadas pelos curadores. Tratei logo de arrematar uma linda edição, e pouco impressa, do “T.S. ELIOT POEMAS”, mas fiquei mesmo de olho numa raridade finíssima de tirar o fôlego que estava na prateleira, por hora meus honorários não comportam tal aventura econômica.

Segue, junto com a carta, o retrato do livro que arrematei por alguns muitos reais…

Ah, em comemoração ao Dia do Poeta, que é hoje, na data que vos escrevo, envio-te um trecho traduzido do modernista inglês:

Conversation Galante
“Você, Madame, é a eterna comediante,
Diante do absoluto, eterna cética, 
Torcendo um quase nada nosso humor errante, 
Com seus duros e indiferentes critérios
Aniquilando nossa incôngrua poética -”
    E- “Mas nós somos assim tão sérios?”

T.S. ELIOT

@livrariapontadelanca

1 - Gato sem Rabo
Por fim, após muito falar, penso que talvez seja efeito colateral de tanto tempo em isolamento, no topo desta lista, poderosíssima tal qual uma espada samurai, está a GSR. Uma livraria encabeçada por mulheres, que emprega apenas mulheres (Trans e Cis) e repleta de um acervo apenas de mulheres. Nascida no início deste ano, num momento ousado, que só ela poderia segurar, com muita identidade. O espaço é aconchegante, lindo, moderno e a curadoria é esplêndida. Tony, a Gato Sem Rabo vale o passeio, a compra, é central, e pode-se dizer que não errou em nada.

@gato.sem.rabo

Te aguardo em breve, Tony, com muita saudade e disposta a gastar solas e mais solas de sapatos. Vida longa!