Chico Antônio, o cantador aos 27 anos

É Típico!

Chico Antônio: o refinamento inconsciente do cantador

Mário de Andrade também publicou um artigo em 1929 no jornal A República de Natal, descrevendo com detalhes o seu encantamento pelo embolador

25 de outubro de 2020

Em suas andanças pelos sertões coletando documentos musicais, Mário conheceu o coquista Chico Antônio. A voz, o carisma e a liberdade de improvisação do embolador encantaram o intelectual,  ganhando destaque em sua pesquisa e outros livros. “Chico Antônio não sabe que vale uma dúzia de Carusos”, disse comparando-o ao tenor italiano. Mário de Andrade também publicou um artigo em 1929 no jornal A República de Natal, descrevendo com detalhes o seu encantamento com o embolador. O artigo foi reproduzido no livro “Memória Viva – Chico Antônio” organizado por Carlos Lyra — que transcreve a entrevista de Chico Antônio, já mais velho, em 1983 na Tv Universitária, da qual Lyra era diretor. A entrevista com Chico fora articulada por Deífilo Gurgel e contou com entrevista de ambos. confira o artigo:

CHICO ANTÔNIO

Mario de Andrade | *Especial para A República, de 27.1. 1929

Uma das sensações musicais mais fortes de minha vida foi ouvir o “coqueiro” norte-rio-grandense Chico Antônio. A fama dele ainda não se espalhou por todo o Estado que nem a de Fabião das Queimadas, de Maria Trubana ou de Manoel do Riachão mas não creio que musicalmente esses tenham sido superiores a Chico Antônio. Pelo menos já sei por informações muito seguras que esses três cantadores foram mais poetas que3 músicos. O cantador de desafio se especializa no verso improvisado. Uma toada basta pra ele, mais propriamente recitativo que melodia quadrada, com a linha bastante elástica pra que o improvisador possa encaixar nela os diversos metros e formas estróficas que entrega. Isso eu mesmo verifiquei e o dr Eloy de Souza, que conheceu profundamente Fabião, pôs em dúvida ser da invenção deste uma cantiga linda que colhi como da autoria do cantador.

Ora Chico Antônio, apesar de improvisador bom e capaz de sustentar um desafio na embolada, apesar dos outros por ser essencialmente musical. É mesmo duma musicalidade tão prodigiosa e tão íntima que consegue, ao longo dos cocos que tira, manifestar esse poder de problemas estáticos, psicológicos, fisiológicos do fenômeno musical.

Chico Antônio é novo ainda. Tem 27 anos espigados, duma simpatia apaixonante, com a cara vivida falando “Está bom”, “Não faz mal” e frases assim perdoadoras pra todos os erros gostosos dessa vida. Cobre tudo um sapê luzido, castanho escuro, cujo pente mais possível é mesmo o chapelão. A voz do canto é magnífica, um bocado estragado já por noites inteiras de abuso. Mas nos dias em que Chico Antônio está “de voz” não é possível a gente imaginar timbre mais agradável. Timbre nosso muito, firme, sensual, acalorado por esse jeito nasal de cantar que é uma constância de todo o povo brasileiro. Apenas Chico Antônio quintessenciou esse jeito nosso de cantar. É um nasal discreto, bem doce e mordente, um nasal caju.

Tive ocasião de escutar vários coqueiros nesta viagem. E cantadores. O que me espanta mais em Chico Antônio, um analfabeto, é o refinamento inconsciente do canto dele. Na certa que inconsciente pois Chico Antônio se põe cantando que seja com voz boa ou rouco. Ele não sabe todas as finezas magníficas com que canta. No “Boi Tugão”, no “Jurupanã”, no “laia, olha o boi”, cocos dos mais bonitos que tira, com que arte ele fecha se frases em firmatas nasais, prolongadas enquanto o coro parte no refrão! Vária as emboladas e dentro do mesmo coco e às vezes com uma audácia estupenda, asai da embolada e parte num canto largo duplicando os valores do tempo, criando ritmos contra-temperados riquíssimos enquanto  “as pancadas do ganzá” vai golpeando no mesmo.

Pois dentro desse individualismo de coqueiro absolutamente excepcional, Chico Antônio tem um valor social formidável. É a expressão mais pura que encontrei na musicalidade litorânea do Nordeste. E o povo reconhece a superioridade de Chico Antônio. Pelas bandas de Goianinha e Penha, por ali tudo ninguém não ignora o nome dele. Todos o amam e até os discípulos de outros coqueiros conhecem e imitam o jeito “de Chico Antônio vadiá”. Talqualmente sucedeu com Manoel do Riachão, já corre a lenda que Chico Antônio tem parte com o Maioral. Ele mesmo descreve com volubilidade desnorteante a briga que teve com o cão e a visita no inferno.

Descreve de maneira moderníssima e impressionante. Abandona o reconto no meio, jamais que o acaba, o envolve de frases e palavras tradicionais, pouco se amolando com a claridade do sentido. O que o embala é a música. As palavras pra ele não passam de valores musicais, duma claridade sonora vezes esplendida e sempre adequada. E essas palavras ajuntadas assim numa função que na aparência é meramente musical, tiradas da sub-consciência pela procura do ritmo, rima e som têm gosto de terra de amor, de trabalho, e vangloria individualista dele, Chico Antônio é um valor social exato. O canto dele exerce a função das encatações primitivas, canto de todos num rito de dinamogenias benfazejas. A gente se deixa encantar e não pode mais sair dali.

Chico Antônio principiou cantando e era de noite. O carbureto riscava um semicírculo vasto na frente da sede Bom Jardim. Os moradores vieram vindos atraídos. Sentavam, se acocoravam, ficavam em pé na barra do semicírculo da luz, vultos imóveis na escureza. Escutando. Enquanto durou a cantiga ninguém não se afastou dela. Nem eu, sentindo se renovarem as forças nativas que de tempo em tempo careço do retemperar, viajando por meu país.*

 

O artigo publicado no jornal A República foi reproduzido no livro “Memória Viva Chico Antônio”. Edição do Sebo Vermelho.