Com Marcos Palmeira, Leon Góes foi O Corcunda em O Homem que Desafiou o Diabo: de volta ao Nordeste

Reportagens

Chico Doido de Caicó vai virar filme dirigido por Leon Góes

Há um mês morando em Natal, ator e diretor de origens potiguares trabalha na adaptação para o cinema de “69 poemas de Chico Doido de Caicó”

03 de outubro de 2020

por Cinthia Lopes

O ator carioca Leon Góes era adolescente quando conheceu as histórias de Chico Doido de Caicó, o poeta dos versos desinibidos e desbocados que nasceu nos anos 20 do século passado na simbólica cidade seridoense. Era assunto nos almoços de domingo quando os amigos potiguares aportavam na casa do seu pai, o escritor e educador Moacyr de Góes, ex-secretário de educação de Djalma Maranhão.

Dizem que o poeta Moacy Cirne, um dos frequentadores da casa dos Góes, jurou ter conhecido Chico Doido na Feira de São Cristóvão, onde frequentava.

Da biografia minúscula, o personagem nascido Francisco Manoel de Souza Forte saiu de sua terra natal nos anos 40, para servir na Marinha Mercante e morreu em 1991, em Duque de Caxias. Até obituário de jornal carioca encontraram. Era uma figura de um mundo paralelo até tornar-se conhecido da turma de Comunicação da Universidade Fluminense, quando seus poemas de narrativas engraçadas e picantes foram lançados no boletim Balaio Incomum - uma folha porreta, publicação de Moacy Cirne que circulava na instituição acadêmica onde ele era professor. Assim, a fama de Chico Doido passou por gerações chegando a ser "patrono" póstumo da turma de formandos em RJ.

O escritor e professor Moacy Cirne foi responsável pela descoberta de Chico Doido

Em 2002 a obra do poeta caicoense foi reunida no livro “69 Poemas de Chico Doido de Caicó”, organizado pela dupla Cirne e Ney Leandro de Castro e editado pelo Sebo Vermelho. No ano seguinte foi adaptado para o teatro pelo próprio Leon Góes, ator então já consolidado que enveredava como encenador.

O monólogo contou com a ajuda do experiente diretor Aderbal Feire-Filho e do irmão Moacyr Góes, que é diretor de cinema. A peça ganhou temporada no teatro Villa-Lobos, foram dois meses de sessões concorridas às 21h e meia-noite. O ápice foi quando uma turma de caicoenses resolveu assistir a peça, aí o teatro quase veio abaixo. O boca a boca rendeu um artigo no jornal francês Le Monde.

Quase 20 anos depois, Chico Doido voltou a cochichar no ouvido de Leon Góes instigando o ator a adaptar aquele mesmo livro de poemas para o cinema. “Foi minha primeira peça como diretor, e será meu primeiro filme como cineasta”, contou Leon em entrevista ao TÍPICO. Há um mês morando em Natal, o diretor deu início as conversas sobre a adaptação de “69 Poemas” com pessoas de Natal. 

Chico Doido e a pandemia do coronavírus trouxeram o ator de volta às suas raízes. “Saí daqui com um ano de idade quando meu pai foi preso, em 64". Moacyr de Góes era secretário do governo Djalma Maranhão e participou do processo de alfabetização popular, com a campanha "De Pé no Chão Também se Aprende a Ler". As histórias daqui Leon diz "ter aprendido com ele e seus amigos”, lembrando Moacy e Ney.

 

Leon e a atriz Ingrid Rocha, que também estará no elenco. O ator está morando em Natal com a filha Anita. Fotos: cedidas

O roteiro está praticamente pronto e no momento o diretor está conhecendo profissionais da cultura local. De mais urgente ele procura um produtor para as questões burocráticas. Planeja ainda entrar nos editais e chamadas da Lei Aldir Blanc.

Na sexta-feira (3) visitou a Funcarte e na companhia do sebista Abimael Silva se encontrou com o Secretário Municipal de Cultura, Dácio Galvão, para falar sobre detalhes da empreitada. Leon adianta que pretende convidar elenco e equipe técnica da terrinha, principalmente na área da fotografia e produção.

Três nomes no elenco estão confirmados. Abimael Silva do Sebo Vermelho foi convocado para o papel do poeta conterrâneo Moisés Sesyom e Leon Góes será o mitológico caicoense. A atriz Ingrid Rocha também atuará no filme. A ideia é misturar atores e não atores no elenco.

No teatro fez "A Falecida", uma das chamadas tragédias cariocas, ao lado da atriz Bianca Rinaldi

Leon atuou principalmente no teatro. Fez "Baal", pela qual ganhou o prêmio de ator revelação, "Os Justos", "Fausto", "Gregório" e "Escola de Bufões", também com um Prêmio Mambembe de Melhor Ator. No cinema fez “O Homem que desafiou o Diabo”, dirigido pelo irmão Moacyr Góes, “Tainá- A Origem”, “Tieta do Agreste” e novelas como “Laços de Família”. Confira trechos do bate-papo com o diretor Leon Góes:

Leon, anos atrás você adaptou “69 poemas de Chico Doido de Caicó” para o teatro. E agora resolveu fazer um filme sobre o mesmo tema. Qual é sua relação com a obra e o personagem?

Minha relação é inicialmente afetiva, tive uma amizade com Moacy Cirne, que conheci ainda criança, assim como Ney Leandro de Castro. Os dois eram amigos de meu pai e frequentavam minha casa. Moacy publicava um fanzine na faculdade com os poemas de Chico Doido e quando chegava em casa todos se divertiam com o Balaio. Eu nem pensava em ser ator. Era uma coisa de adolescente ainda, mas eu achava muito engraçado e pitoresco. Quando me formei e consolidei minha carreira como ator de teatro, resolvi dirigir minha primeira peça e fiquei pensando algo que fosse mais um monólogo e me veio na cabeça o Chico Doido. Fui estudar e fiz um roteiro a partir dos poemas, tinha as improvisações, cenas de plateia. O diretor Aderbal Freire-Filho me ajudou muito, assim como meu irmão Moacyr Góes. Fomos pegando dinheiro daqui e dali e acabou que a peça tinha duas sessões no sábado, uma que começava às 9h da noite e outra de meia noite. A gente se divertia muito. O engraçado é que Chico Doido era tido como pornográfico, mas senhoras de 70 anos vinham em grupos ao teatro e morriam de rir. Até que o ápice foi em uma noite quando uma galera de Caicó veio assistir a peça. O pessoal ria muito por que entendiam a linguagem e nesse mesmo dia veio um crítico de teatro. Então a peça teve uma repercussão enorme na época. Esse personagem pitoresco e fescenino sempre me fascinou, como um Don Juan nordestino. O cara era muito engraçado.

E quanto à produção, pretende reunir um elenco e equipe locais?

Durante essa pandemia, quando fiquei sem fazer nada, eu tive a ideia de fazer o filme ainda morando no Rio. Veio Chico Doido, como um anjo que soprou no meu ouvido. Por que não fazer meu primeiro filme sobre ele, já que foi minha primeira peça? Então vim pra Natal. Mas desta vez será algo mais complexo, quero trazer outros poetas e figuras icônicas do nordeste, personagens que estão nos poemas dele como o pernambucano Zé Limeira, o potiguar Moisés Sesyon, que Câmara Cascudo cita em muitas ocasiões. Também quero resgatar o natalense contador de causos Zé Areia (personagem pitoresco de Natal dos anos 40), o baiano Gregório de Matos (poeta Barroco), são todos poetas que tem essa sexualização com tratamento literário e popular, mas sem brutalidade.

Nos poemas de Chico Doido há muitas referências a personagens, como Zé Limeira e outros. Como será a escolha das figuras que irão compor a história?

Eu tenho uma relação com o personagem muito grande e uma proximidade com o Rio Grande do Norte, sou filho de Moacyr de Góes. Meu pai foi preso em 64 e fui morar no Rio muito pequeno, com um ano de idade. Conheci minha terra através das histórias contadas pelo meu pai e seus amigos, Moacy e Ney Leandro, que viraram amigos meus depois. Convidei Abimael, que é um cara erudito, para viver o poeta Sesyon. Quero fazer um filme com as pessoas daqui e trazer personagens daqui. Homenagear Racine Santos, com quem ainda nem conversei. E Moacy Cirne também. Estou há um mês em Natal e conheci pessoas incríveis, como Amaro Lima e Fátima Nunes. Já conhecia atores aqui por conta do Homem que Desafiou o diabo. Estou na fase de conhecer as pessoas.

Chico Doido de Caicó realmente existiu, você chegou a falar sobre isso com Moacy e Ney?

Olha, existe essa controvérsia. Até quando escrevi a orelha do livro ’69 Poemas de Chico Doido de Caicó” eu brinquei com isso, lembrei que já duvidaram da existência de Shakespeare. Então Chico Doido é um  personagem que ganhou vida própria, não importa. Mas sei que ele apareceu até num obituário no jornal. Então pra mim o personagem pode ser mais interessante do que a persona. E se a gente parar pra pensar, tudo aqui no Rio Grande do Norte tem algo meio exótico. Imagine que uma cara construiu um castelo em Carnaúba dos Dantas para morar com as cinco mulheres. E as histórias absurdas de Zé Areia? A realidade não me constrange, gosto de mesmo de transformar a imaginação em arte.

Você veio a Natal para os primeiros contatos, como está sendo a repercussão?

Ainda não teve uma repercussão por que estou correndo atrás de pessoas da cultura para conversar, na verdade estou primeiro procurando um produtor para fazer a parte burocrática. Tive um encontro com o Secretário municipal de cultura, o Dácio Galvão, eu achei o cara maravilhoso de conversar, um cara culto, inteligente, receptivo, entende do que eu estou falando. Não é fácil encontrar isso, geralmente na política a gente se depara com muita demagogia. Mas eu acho que Natal, pelo que estou vendo, é uma coisa pronta pra explodir, só falta acenderem um fósforo. Tem um combustível de profissionais muito sérios na cultura. Eu quero aprender com essas pessoas, e quero reunir pessoas populares também, trazer gente de Mãe Luiza para se integrar ao elenco. Conheci um tal Cachorrão do Brega que mora em Assu, fiquei interessado. O fato é que eu estou aqui para aprender com as pessoas, pois conheço minha terra na teoria.

Alguns versos de Chico Doido de Caicó:

UMA VEZ EM CAMPINA GRANDE

Uma vez em Campina Grande

Perto da Maciel Pinheiro

Tomei tanto sorvete de rainha

Que o Rei Luís de França

Resolveu bombardear o Japão.

Acuda-me Zé Limeira, nego véio,

Tocaram fogo no Cariri

Só pra que eu pudesse rimar

Tatu com xixi.

 

UM DIA ENCONTREI ZÉ LIMEIRA

Um dia encontrei Zé Limeira

Às margens do Bodocongó

Eu perguntei por Campina

Ele perguntou por Caicó.

Perto de Guarabira

Lá pras bandas de Sapé

Cristo dançava xaxado

Com a princesa Isabé.

Eu também já fui jumento

Diz o Novo Testamento.

 

***

Quero que o meu último poema

Tenha a minha visão do paraíso:

Uma gruta cor de rosa

Cheia de musgo e leite, leite e musgo

Onde penetrarei com a minha tesão de eternidade