O Natal é uma antiga celebração pré-cristã, ligada ao mito da esperança e do renascimento. Freepik

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CHRISTMAS BLUES

Muitas das coisas que fazemos hoje em dia são práticas e comportamentos que estão profundamente ligadas ao DNA da Humanidade

22 de dezembro de 2022

Clotilde Tavares

Nesta época do ano, proliferam nos jornais, nas revistas e na Internet artigos, crônicas e escritos diversos sobre o Natal. Entre nós, cristãos e ocidentais, comemora-se nesta época o nascimento de Jesus Cristo, o filho de Deus.

Na verdade, meu caro leitor, o Natal é uma antiga celebração pré-cristã, ligada ao mito da esperança e do renascimento. Os povos antigos, nos países do Norte da Europa, faziam essa celebração coincidindo o solstício de Inverno, data em que a noite é mais longa e o dia parece que não vai mais amanhecer. Mas o Sol surge, renovando nas pessoas a esperança de que, com o fim do Inverno, venha a Primavera e a Natureza volte a desabrochar em flores e frutos. Na verdade, após o Solstício, os dias vão se tornando cada vez mais longos até que chega o equinócio vernal, em 21 de março, onde dias e noites têm a mesma duração.

Para marcar com exatidão as datas dos Solstícios e Equinócios, os povos antigos, depois de décadas de observação, faziam marcos de pedra. Acompanhando a projeção das sombras, conseguiam determinar os eventos astronômicos relativos ao Sol. O mais famoso desses marcos é Stonehenge, na Inglaterra, erguido cerca de 3.100 a.C.

Nas culturas antigas, da época neolítica, as últimas provisões de inverno eram cuidadosamente reservadas para serem consumidas no dia 21 de dezembro, data do solstício. Neste dia, os grupos familiares se reuniam e compartilhavam alimentos de grande valor energético como frutas secas e sementes buscando uma energia extra para suportar os últimos dias de frieza. É daí que vem o uso que fazemos desses alimentos até hoje nessa época do ano, mesmo que entre nós não seja inverno e que o calor de dezembro não recomende a ingestão de pratos tão calóricos. Comemos nozes, castanhas, passas e frutas secas porque tribos primitivas, que viveram há cinco mil anos, assim o faziam.

Não é curioso, meu caro leitor? Muitas das coisas que fazemos hoje em dia são aquilo que os estudiosos chamam de “sobrevivências”, práticas e comportamentos que estão profundamente arraigados no DNA da Humanidade. Quando você enfeita a árvore de Natal, faz isso porque os povos antigos enfeitavam os carvalhos, que eles consideravam sagrados e que estavam despidos de folhas no rigoroso inverno europeu. Enfeitavam estas árvores para atrair de volta o espírito da natureza, que se pensava que havia fugido.

Com o surgimento do Cristianismo e a sua expansão pelo mundo, principalmente a partir do ano 313 d.C., ano em que o imperador Constantino converteu-se e adotou a religião cristã em todo o Império Romano, resolveu-se então estabelecer uma data para comemorar o nascimento de Jesus Cristo, tendo sido escolhida o dia 25 de dezembro por situar-se praticamente na mesma data em que a população já festejava seus antiquíssimos cultos ligados ao solstício de Inverno. Outras festas cristãs – como a Páscoa, o São João, o Dia de Todos os Santos – também foram estabelecidas da mesma forma, sobrepondo-se às festas pagãs já existentes, imprimindo a elas novas características ligadas à religião que nascia mas permitindo que costumes e práticas, relativas à forma de comemoração, permanecessem da mesma forma. Daí a alimentação especial, a árvore, a troca de presentes e outros aspectos de origem pagã que perduram até hoje. Muitos autores informam que o primeiro Natal cristão foi comemorado em Roma no ano de 336 d.C.

Uma das coisas que mais me agradam quando penso sobre o Natal é a ideia do milagre da virgem que deu à luz uma criança. Sou doida por milagres, e penso que eles são preciosos como reforço da Fé, condição indispensável para que o ser humano possa continuar com sua trajetória. Considero esse milagre do nascimento de Cristo um tema não só profundamente poético, mas também riquíssimo de simbologia e interpretações.

Sobre esse caráter milagroso da Natividade, quem fala é Jacopo de Varazze, em “A legenda áurea”, um livro maravilhoso, cheio de histórias da vida dos santos, escrito no século XIII e editado recentemente em português pela Companhia das Letras. Ele diz que o nascimento do Cristo foi milagroso “quanto ao modo de geração, pois o parto superou as leis da natureza por ter sido uma virgem a conceber; superou a razão, pois o gerado foi Deus; superou a condição da natureza humana, pois foi um parto sem dores; superou o normal, pois a virgem não concebeu de sêmen humano, mas de um sopro místico, o Espírito Santo, que tomou o que havia de mais puro e de mais casto no sangue da virgem para formar aquele corpo”.

Citando Anselmo, Jacopo de Varazze diz que Deus mostrou um quarto modo admirável de criar um homem. Com efeito, “Deus pode criar o ser humano de quatro maneiras: sem homem nem mulher, como criou Adão; de um homem sem mulher, como criou Eva; do homem e da mulher, como de costume; e de uma mulher sem homem, como nesse caso maravilhoso do nascimento de Cristo”.

Reforçando esse caráter milagroso, o Divino Nascimento foi anunciado por todos os tipos de criaturas, viventes e não viventes, desde a estrela, que brilhou no céu e apontou o caminho aos Reis Magos, o boi e o jumento que dobraram os joelhos frente à manjedoura e até “as vinhas da Engadia que produzem bálsamo, e que nessa noite floriram, deram fruto e destilaram seu licor”.

Que coisa linda, não é, meu caro leitor? É possível ficar indiferente a uma coisa dessas, sendo ou não sendo católico, cristão ou ateu? Eu não consigo.
Observo, com alguma surpresa, que o Natal já foi uma festa pagã, depois tornou-se cristã, e pelo visto está prestes a se tornar pagã novamente pela corrida desenfreada às lojas, pela substituição das igrejas pelos shopping-centers como lugares de celebração, e por ter se tornado para muita gente uma festa sem significado, sem reverência, sem milagre.

Há ainda um aspecto interessante. O Natal é antes de tudo uma festa de família, que desde o tempo do paganismo sempre foi comemorada em família, no interior do lar, em volta de uma ceia. Mas hoje em dia geralmente estamos cansados, estressados e cheios de obrigações de última hora. São as duras injunções da vida moderna, dita “civilizada”, que nos arrasta a esse torvelinho de compras de última hora, embalagens para presentes, confraternizações, amigos secretos e muita agitação no trânsito, aumentando o número de acidentes.

Não posso deixar de me lembrar dos natais da minha infância, quando não existia essa entidade chamada shopping-center em torno da qual se estrutura praticamente toda a nossa atividade natalina. Naquele tempo as coisas eram mais simples, menos sofisticadas. Quando criança, nunca me levaram para “ver Papai Noel no shopping” ou em qualquer outro lugar. Em Campina Grande, no início da década de 1950, coisas como essas eram distantes dos nossos festejos, e como Papai vez por outra estava desempregado, havia natais em que não adiantava colocar o sapatinho na janela do quintal porque o bom velhinho não vinha mesmo. Mamãe, com sua sabedoria, contou a mim e a Bráulio que Papai Noel era o pai da gente mesmo, mas só quando havia dinheiro; e que se em um ano as coisas estavam ruins, era sinal de que no outro ano elas estariam melhores. Dessa maneira simples, nos ensinou a Esperança. E não sei como, dava um jeito de arranjar uns trocados e nos levava para “a festa”, que era como chamávamos o parque de diversões armado em toda a extensão da avenida Floriano Peixoto, a principal rua da cidade, com roda-gigante, carrossel e os pavilhões onde todos bebiam e comiam à vontade. Lá, dava algumas voltas conosco no carrossel e depois voltávamos para casa, ainda tontos e com os olhos cheios das luzes em redemoinho… Não havia ceia, nem presentes, mas estávamos felizes.

Hoje não é mais assim. As estatísticas mostram que na época de Natal há maior incidência de crises de depressão e de suicídios, principalmente entre pessoas idosas. Há uma condição já reconhecida na clínica chamada “Christmas blues” ou “depressão de Natal”. A pessoa sente-se triste, desamparada, desanimada, sem perspectiva. Os encontros de família contribuem para tornar mais intensos ainda esses sentimentos, e fica-se muitas vezes lembrando do que passou, mas não com aquela saudade boa e nostálgica, de quem “foi feliz sem saber”: ao contrário, a lembrança vem cheia de dor e solidão, de sentimento de perda irreparável, de profunda tristeza, de angústia extrema.

É por isso que tem gente que simplesmente “detesta o Natal”. Esta “depressão de Natal” tem alguns fatores desencadeantes: sentimentos de culpa por coisas mal resolvidas do passado, estresse e cansaço (isso acontece quando o freguês entra na maratona de compras-ceia-comemorações) e dificuldades com a família.

Como se defender da praga? Cuidar da cabeça, de preferência com ajuda profissional; minimizar as expectativas, não esperando de uma simples festa de Natal mais do que ela pode dar; procurar não se cansar muito fisicamente, comer e beber com moderação, pois afinal não estamos cobertos de neve para precisarmos nos empanturrar de calorias; ter tolerância e compreensão com a família reunida, e respeitar as esquisitices de cada um, não se envolvendo em disputas; não tomar resoluções drásticas e superiores às nossas capacidades; e, finalmente, permitir-se ficar triste e ter saudade, pois a tristeza e a nostalgia pelo que se foi são sentimentos naturais e devem ser experimentados, respeitados, aceitos e vivenciados.

Finalmente, lembrar novamente do Milagre. Sugiro a você, que está triste, que escolha o Natal deste ano como a festa da Fé, a festa do Milagre e a celebração da Esperança. Não importa o que aconteceu: se houver Fé na possibilidade do Milagre isso já é garantia de que o Milagre aconteça.

Feliz Natal.



Este texto foi publicado no livro Notícias da Existência do Mundo (Natal, Escribas,2017. p.144) e no blog Umas&Outras.



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