Pequenas histórias tiradas do HD
Colunas
Textos para se divertir um pouco e assuntar sobre filosofia, autoconhecimento e linguagem
09 de fevereiro de 2023
Clotilde Tavares
A preguiça não é um dos meus maiores defeitos – tenho outros, muito mais terríveis – mas está entre as dificuldades com as quais me debato no cotidiano. Trabalho e produzo além do que é esperado para alguém como eu, mas tem dia que eu realmente só quero maratonar séries na TV.
Hoje é um desses dias, e com preguiça de escrever meu texto aí de 700-1000 palavras de toda semana, vou fazer diferente, vasculhando o HD e reunindo aqui trechos pequenos, que andaram no instagram e no facebook há tempos, que não dão para construir uma crônica inteira mas que certamente vão lhe divertir um pouco.
#01 #pensando – A leitura melhor de todas é aquela que suscita pensamentos. Leio dez livros desses escritores modernos, que estão por aí ganhando prêmio e nada vem à minha cabeça. Mas imagine, por exemplo, o Grande Sertão, de Guimarães Rosa. Nem bem leio uma página que me levanto dali, acesa, inquieta, a cabeça variando de tanto insight que me chega. Aí caminho pela casa, lavo coisas na pia, mudo objetos de lugar, porque o pensamento em mim exige algo para as mãos, uma tarefa mecânica. E penso em todos os livros que quero escrever, e textos, e peças, e memórias, sabendo que não vou poder, que não vou ter tempo, porque para escrever qualquer coisa eu preciso pensar muito, dez, vinte vezes mais. Enquanto a espuma carrega a gordura da louça e depois é carregada pela água, os pensamentos escorrem um atrás do outro e eu preciso de espaço, caminho pelo apartamento, vou à varanda e espalho minha vista sobre a cidade, e parece que ouço tudo que se passa em cada canto dela...
#02 #autoconhecimento #autoretrato #selfie – Quem sou eu? A desorientada que acorda de manhã, sem saber em que planeta ou encarnação se encontra? A energética do meio-dia, andando de lá para cá, começando mais tarefas do que consegue terminar? A sempre-repleta do pós-almoço, dividida entre a gulodice e a disfunção hiatal? A que quer estar na rua quando está em casa e, na rua, não vê a hora de voltar para casa? A feliz e cheia de paz no final da tarde, que lê na varanda, enquanto o mundo fica banhado na luz rósea do pôr-do-sol? A mal-humorada e impaciente quando precisa conviver contra a vontade? A seriemaníaca e noveleira, noites em claro em frente à TV? O fantasma trôpego que acorda na madrugada para ir ao banheiro? A que se recusa a pendurar as sapatilhas? Ou aquela absolutamente feliz no momento em que a caneta desliza sobre o papel?
#03 #morrendoabsolutamente #popfilosofia #prontofalei #DraGiseldaTrigueiro – Daqui a cem anos, ninguém se lembrará de mim. Ninguém saberá quem eu sou nem associará meu nome a coisa alguma. Talvez eu sobreviva na lembrança de algum tetraneto, o que acho difícil, pois nem meus netos se lembram de mim agora, que estou viva e nas redes sociais. Se por acaso meu nome for parar numa placa, dando nome a algo, daqui a cem anos quem saberá de quem se trata? Morta há pouco mais de 30 anos, a Dra. Giselda Trigueiro, inteligente, cult e elegante, deu nome ao hospital de doenças infecciosas da cidade. As pessoas se referem a ele como “o Giselda”. “Vou passar no Giselda”, “está interno no Giselda”, assim, com o artigo flexionado no masculino. Pois é. Melhor morrer definitiva e totalmente, morrer absolutamente, como dizia Manoel Bandeira, morrer sem deixar sequer esse nome.
#04 #ocorpofala #linguagem #segredos – Você fala e eu lhe decifro. O que você não quer dizer, e não diz com palavras, diz com o gesto, com o olhar que foge do meu, ou os dedos que pegam e soltam os objetos, a ponta do pé que desenha círculos no ar. Você fala e pausa, e hesita, e omite – mas eu sei. A sua sobrancelha que se ergue um milímetro me diz o que quero saber, e quando você entreabre a boca e toca o lábio superior com a ponta da língua é como se escrevesse uma carta, um bilhete, demonstrando suas intenções. Falou sem respirar? Ou respirou antes de falar? A respiração foi longa ou curta? Onde estava o olhar, enquanto respirava? Qual a parte do corpo que você me mostra involuntariamente enquanto fala? Apalpa a nuca me mostrando o cotovelo? Ou abre os braços me mostrando a palma da mão? Adianta o ombro direito ao falar? Ah, esfinge, eu te decifro inteira e depois, saciada, também te devoro.
#05 #assuntando – O mito, a personagem, o ator. James Dean, ou Caleb Trask? Rodolfo Valentino ou o Sheik? Wagner Moura ou o Capitão Nascimento? Marilyn Monroe, ou a loura do apartamento ao lado? Entre todos, aquela que fazia a terra tremer: Gilda. Nunca houve uma mulher como Gilda. Numa época em que era proibido pelos moralistas tirar a roupa nos filmes, Gilda anda pelo palco, meio desajeitada e cria o “bate-cabelo” mais imitado de todos os tempos. Levanta os braços, mostra nuca e axilas, tira lentamente a luva – só uma – e pronto: está nua, no palco e na imaginação da plateia. Gilda, mulher/mito criada há setenta anos pelo diretor Charles Vidor e encarnado por Rita Hayworth, ainda alimenta fantasias. Nestes anos em que vemos divas milimetricamente trabalhadas oito horas por dia nos aparelhos das academias e que se exibem em closes uterinos, Gilda flutua em cetim negro, toda nua/vestida e assumindo: “Put the blame on Mame, boy!”
---------
http://linktr.ee/ClotildeTavares clotilde.sc.tavares@gmail.com
12 de abril de 2023
07 de abril de 2023
07 de abril de 2023
28 de junho de 2022
16 de junho de 2022
20 de fevereiro de 2022
20 de fevereiro de 2022
20 de fevereiro de 2022
04 de junho de 2023
15 de setembro de 2022