Nelson Patriota deixou sua marca como jornalista, escritor e crítico. Foto: Tribuna do Norte

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Conversa com Nelson Patriota 

Entrevista feita por Lívio Oliveira reflete a atualidade e a riqueza do pensamento do intelectual potiguar, que faleceu em janeiro deste ano

21 de janeiro de 2021

Por Lívio Oliveira

 “'Read me, do not let me die!” 
(“Leiam-me, não me deixem morrer!”)
Edna Saint Vincent Millay

Para a apreciação livre do público leitor do Típico Local, segue abaixo a entrevista que tive a honra e a felicidade de fazer com o saudoso Nelson Patriota, um dos mais importantes intelectuais do Rio Grande do Norte, que nos deixou neste mês de janeiro de 2021. A entrevista, feita exatamente em janeiro de 2011, completou agora dez anos.

Tendo em vista as aguçadas visão e inteligência de Nelson, sempre à frente do seu tempo, acredito mesmo que há ainda um grande frescor nas palavras que todos poderão ler adiante. Alguns anos depois, tornamo-nos confrades na Academia Norte-rio-grandense de Letras, o que ampliou a minha honra e as possibilidades de parcerias intelectuais, infelizmente encerradas com o falecimento precoce e muito lamentável do nosso querido Nelson.

Escritor, acadêmico da ANRL, crítico literário, poeta, tradutor (poliglota), editor, revisor, Nelson desenvolveu sempre as suas atividades intelectuais com seriedade, honestidade e com olho e a mão extremamente meticulosos. Tudo que produziu mantém a marca da qualidade e do esmero. Desde a época em que foi editor d'O Galo (onde publiquei textos, com a anuência e a aprovação luxuosa de Nelson e Luís Carlos Guimarães, pela primeira vez), tenho um respeito elevado por Nelson. Nelson se dedicou também à literatura de ficção, com livros como "Colóquio com um Leitor Kafkiano", de contos, o que demonstra mais uma vertente que segue com primor. E

Nelson já anunciava, na época da entrevista, que viria de sua lavra um romance, além de uma seleção de pequenos ensaios com fulcro na literatura norte-rio-grandense. Também ingressou, com qualidade indiscutível, na poesia (fiz as orelhas de um belo livro de odes publicado por Nelson).
Vieram aos leitores várias outras obras. Foi um luxo verificar que Nelson não se acomodara num único gênero dentro das suas amplas possibilidades do fazer literário. A palavra de Nelson foi até onde foram o seu olho sensível e a sua profundeza de alma. Confiram e confirmem a grandeza intelectual e humana de Nelson Patriota, lendo o nosso diálogo.

Vamos à conversa com Nelson Patriota, eterno mestre e confrade:

L.O. Nelson, em primeiro lugar quero expressar a minha especial curiosidade acerca da importância e da realização de uma vida pessoal dedicada às palavras literárias. Isso lhe satisfez e/ou satisfaz? Isso lhe preencheu profissionalmente? Houve impasses nessa história? 

N.P. Eu poderia dizer que tem sido uma forma de satisfação pessoal, haja vista que o convívio diário com os livros é uma escolha, dentre inúmeras outras que eu poderia eleger na vida. Optei por escrever e isso supõe a leitura como ponto de partida e de chegada: uma simbiose que se renova no próprio ato da leitura/escrita. Eu não diria que isso me satisfaz profissionalmente, até porque sendo jornalista e exercendo esse ofício, entre outros, me sinto profissionalmente dividido. Mas é uma opção pessoal inegociável, não importando satisfações profissionais que daí decorram. Quanto a impasses, enfrentei-os de diversos tipos, mas sempre soube o que quis.

L.O. Que estágio de sua trajetória intelectual você se considera vivendo atualmente?

N.P. Estou vivendo uma fase de estabilidade em que administro minha obra e encaminho-a para um determinado sentido. Para isso, faço opções e elejo prioridades, tanto de escritura quanto de leitura. Devo confessar, ao contrário de alguns escritores, que preciso da leitura, pois ela alimenta o que escrevo. Para dar um exemplo, planejo publicar nos próximos meses uma seleção de pequenos ensaios centrados na literatura norte-rio-grandense, fruto, aliás, de leituras que fiz nessa área. 

L.O. Em que a experiência com a editoração de O Galo contribuiu, Nelson, para sua construção como intelectual?

N.P. A experiência à frente de O Galo foi importante para aprofundar minha convivência com escritores de minha geração, especialmente os nordestinos, mas também de outras regiões do país. Dirigir O Galo também me ajudou a me disciplinar profissionalmente e desenvolver um modo de ver e avaliar o que chamamos de literatura, sua função, seu valor, seu alcance etc. Posso dizer ainda que esse diálogo multiliterário me auxiliou a amadurecer conceitos e valores literários. Acrescentaria, porém, que minha relação com a literatura começou efetivamente no convívio doméstico, com meus pais e irmãos. Outro momento importante foi minha experiência profissional no jornal A República, duas décadas antes de O Galo, quando criei uma página literária dominical que deu origem ao suplemento cultural Contexto, na mesma “República”, do qual fui também editor.

L.O. Que transformações O Galo produziu no que concerne à Literatura Potiguar (e Nacional)?

N.P. Não creio que O Galo, em suas diversas fases, tenha produzido alguma transformação significativa na literatura potiguar, mas sem dúvida deu frutos diversos. Um deles foi a minha Antologia poética de tradutores norte-rio-grandenses (EDUFRN, 2008), cujo embrião foi O Galo. A fortuna crítica que ajuntei à edição crítica do livro Corpo de Pedra, de Bosco Lopes, editado também pela editora da UFRN em 2007, retirei-a integralmente da edição de O Galo que dediquei ao poeta Bosco Lopes. A reedição de 113 traições bem-intencionadas, de Luís Carlos Guimarães, que preparei para a Editora da UFRN, ganhou textos retirados de edições de O Galo. Essas três obras já permitem ver que não foi vão o trabalho feito em O Galo, sem falar que outras obras poderão ser retiradas, num futuro não distante, daí, como uma seleção de entrevistas com poetas e prosadores, por exemplo. Penso, porém, que o trabalho que desenvolvi n’O Galo não acabou. De certo modo, prossegue no trabalho que faço como editor da Revista do Conselho Estadual de Cultura e nas atividades que faço na Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

L.O. A Literatura produzida no RN tem autonomia e essencialidade? Em que patamar se encontra dentro do contexto nacional? 

N.P. É difícil julgar coisas como alcance e essencialidade de uma literatura. Mas é evidente que a literatura potiguar tem suas características, limitações e contribuições próprias, e permanece sob o domínio do nome de Luís da Câmara Cascudo, embora menos do que no passado. De todo modo, Cascudo é ainda o nome que mais repercute para além das fronteiras estaduais. O maior paradoxo dessa situação é que, sem ter sido poeta nem ficcionista, Cascudo ofusca todos os demais nomes da nossa literatura. E aí cabe a teoria de Harold Bloom sobre a angústia da influência. Cascudo é uma influência que continua angustiando cada autor norte-rio-grandense per se. É no convívio com essa influência que a nossa literatura terá de amadurecer para ganhar outras referências à altura dele. Não obstante, é inegável que a poesia norte-rio-grandense tem uma trajetória evolutiva, se a observarmos desde Auta de Souza e Otoniel Menezes, passando por Jorge Fernandes e Myriam Coeli, e chegando até Luís Carlos Guimarães, Zila Mamede e Nei Leandro de Castro. Da mesma forma, o conto potiguar vem ganhando autonomia crescente desde Antônio de Sousa, Otoniel Menezes, Myriam Coeli e Eulício Lacerda a Nilson Patriota, Tarcísio Gurgel e Bartolomeu Correia de Melo. 

L.O. Em sua opinião, quais os melhores momentos da Literatura feita no Estado?

N.P. A década de 1920, com Otoniel Menezes, Ferreira Itajubá, Gotardo Neto, Henrique Castriciano, Luís Patriota, o jovem Câmara Cascudo, entre outros, criou as bases da nossa literatura, definindo sua opção preferencial pela poesia, como ainda hoje acontece, embora em menor intensidade. Os anos de 1950 e seguintes, com a geração de Câmara Cascudo, Américo de Oliveira Costa, Otacílio Alecrim, Esmeraldo Siqueira, Otto de Brito Guerra, entre outros, foi um grande momento das nossas letras. A geração seguinte, com Jarbas Martins, Nei Leandro de Castro, Luís Carlos Guimarães, Zila Mamede, Sanderson Negreiros, Nilson Patriota, Jurandyr Navarro, Moacy Cirne, Diógenes da Cunha Lima, Anchieta Fernandes, Jaumir Andrade, Manoel Onofre Jr., Francisco Sobreira, Dorian Gray, Newton Navarro, Bosco Lopes, Tarcísio Gurgel, Dailor Varela, entre outros, explorou caminhos mais diversificados, como o romance, a poesia, o ensaio, a crítica literária etc. A geração atual, com Bartolomeu Correia de Melo, Pablo Capistrano, Paulo de Tarso Correia de Melo, Clauder Arcanjo, Carmen Vasconcelos, Lenilson Antunes, Leide Câmara, Francisco Ivan, Volonté, Dácio Galvão, Carlos de Sousa, Cláudio Galvão, Lima Neto, Lívio Oliveira, David Leite, Valério Mesquita, Inácio Magalhães de Sena, Elísio Medeiros, Vicente Serejo, Ivan Maciel, Cláudio Emerenciano, Iracema Macedo, Marize Castro, Diva Cunha, entre outros nomes, se mostra não menos produtiva, expandindo os caminhos já explorados pela geração anterior e aprofundando temas como a tradução poética, a biografia, o ensaio histórico, a musicologia etc. Com isso, podemos ver que nossas letras seguem num processo de desenvolvimento, renovação e expansão. 

L.O. Nelson, como conciliar os papéis de crítico literário e autor, sem afetar ambas as facetas do escritor e intelectual? 

N.P. Como afirmei acima, minha escritura se alimenta de minhas leituras, na medida em que me sugerem ideias, me propõem desafios, me inspiram projetos e enriquecem minha experiência de vida. Assim, não posso ver qualquer tipo de conflito ou incompatibilidade entre as leituras literárias que faço, paralelamente às atividades de crítico, ensaísta e tradutor e, ainda, de ficcionista. Alguns contos do meu livro Colóquio com um leitor kafkiano, de 2009, seriam inimagináveis sem certas leituras literárias, e não só de Franz Kafka, como agudamente observou o crítico Tácito Costa, aliás um excelente leitor, da linhagem de Manoel Onofre Jr., Pedro Vicente Costa Sobrinho, Vicente Serejo e Paulo de Tarso Correia de Melo.

L.O. Fazer crítica literária é algo perturbador? Em que medida é vital para a Literatura?

N.P. A crítica literária sempre foi uma atividade vista como essencial para a renovação de qualquer literatura, pois é a crítica que determina, pouco a pouco, o que é transitório e o que é permanente numa dada literatura, suas nuanças, suas inflexões, suas inovações etc. Se eventualmente isso pode ser algo perturbador não é uma questão essencial; a crítica pode ser prazerosa quando depara com uma descoberta que passara despercebida numa primeira leitura e aflora numa segunda; pode ser enervante quando depara com um mau livro, um mau romance, pretensioso e fátuo; pode ser intrigante quando produz perplexidade e espanto à primeira leitura etc., mas sempre acrescenta e ilumina as veredas literárias. 

L.O. Nelson, você teve publicado recentemente um livro de contos. E tem no prelo um romance. Em que medida o romance é a continuidade do conto? Ou são gêneros absolutamente autônomos?

N.P. Romance e conto às vezes se confundem, de tão próximos que são, já que se distinguem, em geral, pelo número de páginas. É evidente, porém, que o romance pode se distinguir por dispor de uma estrutura muito mais complexa do que o conto. No meu caso, posso dizer que o fato de escrever contos há muitos anos, me deu confiança para tentar o romance. Mas nada implica que não existam romancistas sem contos e contistas sem romance. O argentino Jorge Luis Borges é um contista que nunca escreveu romance. Entre nós, Tarcísio Gurgel e Bartolomeu Correia de Melo são dois contistas que não se aventuraram, até o presente, pelo romance. É mais raro que se dê o contrário. 

Nelson Patriota e Lívio Oliveira, confrades e leitores

L.O. A experiência como tradutor lhe agrada e lhe beneficia como escritor? Em que medida?

N.P. cheguei à tradução literária depois de ter trabalhado com traduções diversas de línguas como o francês, o inglês, o espanhol, entre outras. Traduzir poesia se tornou para mim um desdobramento de outras traduções, haja vista que a leitura da poesia em outros idiomas sempre traz consigo o desafio da tradução. Foi assim que comecei a traduzir Skakespeare, Goethe, Tennyson, Auden, Frost, Borges e, ultimamente, a argentina Maria Negroni cuja prosa poética deita raízes no Baudelaire do Spleen de Paris e dos Pequenos poemas e prosa e evoca o Pierre Michon de Vidas Minúsculas e o Haruki Murakami de “Blind Willow, Sleeping Woman”. Meu interesse por tradução poética cresceu devido ao diálogo permanente que mantenho com o poeta Jarbas Martins, leitor apaixonado de poesia. A amizade com o poeta Luís Carlos Guimarães foi outra influência fundamental para a ideia da “Antologia poética” que publiquei. Como traduzir é também uma forma de criação (ou recriação), sinto grande prazer intelectual em traduzir Tennyson, Auden e Goethe e outros poetas de minha eleição. 

L.O. Que momento vive hoje a Literatura Brasileira? Temos um futuro alvissareiro?

N.P. É difícil avaliar a literatura contemporânea brasileira, são muitas regiões, cada uma com seus autores e que, muitas vezes, ficam restritos a ela e só após anos é que repercutem em outras. Sei que o Brasil tem hoje, como teve em outras épocas, bons, medianos e maus escritores. Já temos um presente alvissareiro em termos literários, haja vista a dinâmica que caracteriza o mercado editorial brasileiro e o movimento nas livrarias, nas feiras de livros etc. O nosso amor próprio, porém, só se dará por satisfeito quando tivermos um Nobel de literatura, como propõe o escritor Fernando Monteiro em seu livro O Grau Graumann, que imagina um Nobel brasileiro de origem germânica. Mas isso é outro departamento, como diria o poeta Bosco Lopes. 

L.O. E a Literatura do RN? Como se situa no atual contexto das letras nacionais?

N.P. Se formos medir em termos de best-sellers, talvez não tenhamos muito o que comemorar. Mas se observarmos o vigor, a diversidade e a ousadia dos nossos poetas e ficcionistas, biógrafos e ensaístas, a literatura que se faz hoje no Rio Grande do Norte é dotada de grande riqueza e criatividade comparativamente ao que se faz em Estados vizinhos, como Paraíba, Ceará e Pernambuco.

L.O. Em sua opinião, as Academias de Letras detêm alguma finalidade importante no contexto atual?

N.P. As Academias de Letras e outras instituições públicas de cultura sempre tiveram um papel importante enquanto instâncias animadoras das letras, embora, às vezes, esse dinamismo seja alternado por períodos de acomodação. Lembremos que faltou à glória da Academia Francesa o nome de Molière; à brasileira, o grande poeta Mario Quintana e à norte-rio-grandense o grande vate Otoniel Menezes. É que por trás das instituições estão os homens, com seus interesses, suas idiossincrasias, seus projetos pessoais que nem sempre traduzem os interesses maiores da cultura, embora possam, sim, se mostrar em sintonia com esses interesses. Encaradas de um ponto de vista pragmático, poderíamos afirmar que as academias de letras e afins são melhores na medida em que mais bem dialogam com os outros meios culturais, que se abrem à sociedade em que se inserem, e vice-versa. 

L.O. Nelson, estabeleça, se possível e se quiser, um mínimo cânone de autores mundiais da atualidade.

N.P. Um cânone mundial contemporâneo é algo que foge ao meu alcance, até porque não me acho em condição de dar conta de tantos nomes, tantas geografias literárias. Mas tenho minhas preferências estrangeiras: Gabriel García Márquez e seu insuperável Cem anos de solidão, os tantos romances de Mario Vargas Llosa, de Adolfo Bioy Casares, dos uruguaios Juan Carlos Onetti e Horácio Quiroga, o tão presente Borges, o onipresente Saramago... Dos europeus em atividade, os portugueses Antônio Lobo Antunes, Agustina-Bessa Luís e Miguel Sousa Tavares, os franceses Michel Houellebecq, Jean-Claude Carrière, J. M. G. Le Clézio e Pierre Michon, e os ingleses Doris Lessing e Ian McEwan, o italiano Umberto Eco, os alemães Martin Walser e Günter Grass, o albanês Ismail Khadaré, o egípcio Naguib Mahfouz, a canadense Margaret Atwood, e, mundo afora, os americanos Philip Roth, John Cheever, Raymond Carver, Norman Mailer, Paul Auster, o sul-africano J. M. Coetzee, os japoneses Yasunari Kawabata e Haruki Murakami e outros. Sem falar que nesse processo de leitura, que é, aliás, um processo livre, podemos recuarmos aos clássicos e, em seguida, contatarmos um novo escritor, que não precisa necessariamente ser nosso contemporâneo.

L.O. E nacionais? (Não pedirei, Nelson, para fazer o mesmo com a Literatura do RN. Afasto de você esse cálice).

N.P. Estes formam um conjunto muito variado: João Ubaldo Ribeiro, Gilberto Mendonça Teles, Fernando Monteiro, Raimundo Carrero, Carlos Trigueiro, Rubem Alves, Ronaldo Correia de Brito, Francisco Carvalho, Jorge Tufic, Ariano Suassuna, Marco Lucchesi, Maria Lúcia dal Farra, Claudio Aguiar, João de Jesus Paes Loureiro, Hildeberto Barbosa Filho, Ivo Barroso, Renard Perez, Francisco Dantas, Ruy Espinheira, Marcus Accioly, Jaci Bezerra Lima, Cristovam Tezza, Edson Nery da Fonseca, Carlos Heitor Cony, Milton Hatoum...

L.O. O que é que um leitor deseja? Como escolher autores e livros?

N.P. Como leitor, desejo um livro bem escrito e que contenha uma história de vida, ou seja, um romance, um conto, uma novela, enfim, uma narrativa que fale de algo que amplie minha visão do humano. Os grandes livros se parecem nesse aspecto, mesmo quando enveredam pelo terreno do fantástico, das aventuras extraterrestres, das sagas e dos mitos porque, no fundo, como disse Lukács, toda literatura é, na essência, realista, isto é, humana. 

L.O. O que um escritor almeja? Como conquistar o leitor?

N.P. Lançando mão de um velho truísmo, diria que todo escritor quer ser antes de tudo lido. A poetisa americana Edna Saint Vincent Millay expressou essa ideia num verso famoso: “'Read me, do not let me die!” (“Leiam-me, não me deixem morrer”), e Saramago pediu que o lessem em voz alta, a fim de preservar a oralidade que perpassa sua prosa. Mas é claro que, no fundo, cabe ao leitor a última palavra nessa questão, o que revela também a enorme fragilidade que cerca o ofício do escritor.

L.O. Que contribuições as novas mídias, internet, livros digitais podem dar às letras?

N.P. Estamos ainda engatinhando na era da internet. Mas o que temos visto até agora nos permite fazer algumas ilações sobre o potencial da rede mundial e suas consequências, comparáveis à revolução que Gutenberg promoveu com seus tipos móveis capazes de reproduzir indefinidamente um texto qualquer. A arte, a poesia, a ficção, já se beneficiam grandemente de invenções como o e-book, o e-reader, os leitores eletrônicos, as comunidades virtuais, a instantaneidade das mensagens, os e-texts, os infopoemas etc. Mas ainda é cedo para avaliar o impacto dessas invenções sobre o universo literário. 

L.O. Em sua opinião, o livro, como suporte físico da palavra, vai desaparecer algum dia?

N.P. Não creio, embora admita que muitos internautas tentam vender essa ideia como uma vantagem. A rigor, acho que se a literatura migrasse totalmente para a rede mundial, perderia visibilidade e se refletiria num empobrecimento geral do homem. Não podemos correr o risco de restringirmos a leitura a uma máquina. Máquinas são falíveis, às vezes “rebeldes” entram em colapso, aturdem, confundem e respondem mal ao que se espera delas. Há uma questão ainda mais grave por trás disso: como haveremos de atrair as crianças para a literatura, senão lhes oferecendo belas edições, com ilustrações, letras atraentes, relevos (pop-ups), que elas possam transportar para onde o desejarem, abrindo-as e folheando-as onde quiserem? Isso só poderá ser realizado por meio do objeto livro; uma máquina, por mais “inteligente” que seja, poderá cair e quebrar. E fechada, não constituirá qualquer atrativo para uma criança. E se a criança não for atraída para a leitura e, consequentemente, para a ficção, como formaremos novos leitores no futuro? Ou contamos com o fim da literatura nesse tempo? Aí haveria então de se cumprir a maldição de Fukuyama: seria o fim da história, ou seja, da humanidade. Acho que o livro provou que é um aliado dos homens e não merece (seria perigoso), portanto, esse degredo que alguns tantos apressados tentam oferecer como vantagem. Preferirei sempre o livro em papel, até por uma questão estética, “epicurista”, mesmo. E me dou conta cada dia mais que não sou uma voz minoritária.

L.O. Nelson, quais são suas perspectivas e metas quanto à produção literária pessoal?

N.P. Espero publicar alguns livros que já escrevi na área do conto, do romance, da crítica, do ensaio. Espero ainda escrever outros livros de ficção e, sobretudo, ler a ótima prosa literária, a excelente poesia, os grandes ensaios que, felizmente, existem em farta medida neste mundo. Gosto de pensar, como Borges, que alimento esse pecadilho da vaidade que é jactar-me dos livros que li e leio e, às vezes, releio. Os livros alheios nos permitem essa forma desculpável de vaidade.