Autorretrato de Manoel Dantas e D. Chiquinha, publicada no livro "Seridó"

É Típico!

Curiosidade: O primeiro charuto foi comido com farinha

No livro “Homens de Outrora”, escritor Manoel Dantas registra o pitoresco almoço oferecido pelo padre Guerra em Caicó

12 de julho de 2020

A citação acima não é nenhum causo ou lenda. É uma história registrada no livro “Homens de Outrora”, do visionário seridoense Manoel Dantas (1867-1924). Autor da famosa conferência profética “Natal Daqui a 50 anos”, Dantas foi uma figura múltipla e de espírito moderno e ideias liberais. Dentre tantas funções que ocupou, foi escritor, jornalista, fotógrafo, jurista, historiador, político. Deixou como legado escritos principalmente sobre o sertão do Seridó. Afeito a modernidades, registrou o presente de Natal para deixá-lo às futuras gerações, ficando como o maior autor das principais fotografias antigas que existem sobre Natal e o RN. 

Pois o livro “Homens de Outrora” foi lançado em 1941 e a reedição mais recente foi publicada em fac-simile pelo Sebo Vermelho. Nele o autor narra muitas crônicas vividas por personalidades norte-rio-grandenses, como a curiosa história de um certo almoço oferecido pelo padre Brito Guerra em Caicó, no final do século XIX, no qual os charutos foram oferecidos como digestivo e em vez de fumar, os convivas o comeram como um “doce seco”.

Autorretrato de Manoel Dantas com D. Chiquinha: a primeira selfie

Na foto que ilustra o artigo está Manoel Dantas e dona Chiquinha em clássico autorretrato. A foto foi tirada de frente ao espelho com sua câmera Verascope de Richard, que produzia fotografias com efeito em 3D. A imagem foi publicada no livro Seridó (Fundação José Augusto, 1954). Manoel Gomes de Medeiros Dantas nasceu na região do Seridó em 16/04/1867 e descendia das principais famílias que povoaram a região, vindas da Paraíba e Pernambuco, logo após a guerra dos bárbaros que assolou os sertões potiguares. Estudou latim, francês, inglês, retórica, história e filosofia, formou-se em Direito na Faculdade do Recife, já no período republicano, uma das épocas mais ricas para a vida intelectual no Nordeste. Escreveu romances, contos que se destacavam pelo estilo.

Publicamos a história de “O Primeiro charuto”:

 “O sertanejo, antigamente, apesar da simplicidade da vida do campo, quase nada ficava a dever aos outros povos no tocante aos hábitos de boa sociedade. Famílias havia que se tratavam até com certo luxo. Naqueles tempos era costume todos os fazendeiros abastados irem anualmente ao Recife fazer compras, de modo que daquela cidade traziam sempre as últimas novidades do vestuário. As festas que se celebravam todos os anos, no Caicó no mês de julho e no Acari em dezembro, eram muito concorridas e notadas pelo luxo e riqueza de trajes dos sertanejos.

Entre outras coisas, porém, os nossos antigos eram um pouco descuidados: a habitação e a mesa. As casas tinham pouco conforto, e o passadio, muito substancial, era simples, e servidos sem o gosto e o requinte das sociedades cultas, apesar de serem comuns em algumas casas as baixelas de prata.

O Padre Guerra, tendo sido deputado geral em 1833, quando voltou do Rio de Janeiro, no ano seguinte, trouxe excelente mobília de Jacarandá, um rico aparelho de jantar, copeiros adestrados nos costumes da corte, e preparou a sua casa no Caicó com certo luxo e bom gosto.

Entre as novidades que o Padre Guerra introduziu na sociedade caicoense, não foi menor a do charuto, que até então nem talvez de nome fosse conhecido. Conta-se que, à volta do Padre Guerra do Rio de Janeiro, foram visitá-los dois amigos, cujos nomes a tradição não conservou. O Padre mandou servir lhes o almoço, e no fim da refeição, depois de atacados, com a força de estômagos sertanejos, a carne assada, a galinha torrada, o queijo e outros quitutes da cozinha de um vigário rico que sabia tratar-se, o criado carioca apresentou aos hóspedes, numa rica salva de prata, dois magníficos charutos.

Os pobres matutos ficam em dificuldades, porque desconheciam o ‘manjar’ que, por apresentarem em bandeja de prata, não podia deixar de ser uma das iguarias finas do Rio de Janeiro. Convencidos de que se tratava de uma comedoria, foram com o charuto ao dente, porém não lhes soube bem ao gosto. Recorreram então ao expediente de cortá-lo miúdo e comê-lo com farinha seca.

Assim, repletos com tão ‘saborosa’ sobremesa, voltaram à sala de visitas, onde o Padre, obsequioso, perguntou-lhes:- Então, compadres, almoçaram bem?

- Muito bem, respondeu um deles, mas aquele doce seco que nos deram no fim, era amargo demais. Só com farinha seca podemos tragá-lo. Conhecida a natureza do ‘doce’, o Padre riu gostosamente da forma pela qual seus amigos saborearam o precioso ‘baiano’, e ainda hoje se relembra naquelas paragens o bem se poderia denominar – a história do primeiro charuto no Caicó.”

"Homens de Outrora", de Manoel Dantas, 1941

Reedição Fac-simile, Sebo Vermelho