Registrou e deu acento as danças populares, Congos, Chegança, Pastoril, Fandango, Cabocolinho, Coco
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A contribuição de Mário de Andrade foi decisiva para fixar alguns traços riscados no mapa da esteira etnográfica e estética modernista
02 de outubro de 2020
Dácio Galvão | Escritor e gestor cultural
A contribuição de Mário de Andrade para a constituição de uma dada tradição cultural no Rio Grande do Norte foi decisiva para fixar alguns traços riscados no mapa da esteira etnográfica e da estética modernista do século vinte. Registrou e deu acento as danças populares (Congos, Chegança, Pastoril, Fandango, Cabocolinho, Coco, Boi...) suas derivações e a literatura poética de Jorge Fernandes e Câmara Cascudo colocando-os na cartografia nacional. Jogou pesado na intersecção do tradicional e da ruptura. Publicou-os nos mais importantes periódicos do país: Revista de Antropofagia e Terra Roxa e Outras Terras. Os estimulou o quanto pode no sentido de um direcionamento no movimento modernista em curso que tinha na cidade de São Paulo o centro irradiador das principais manifestações intelectuais. Os poemas Lundu do Difícil e Fox-Trot, de Mário de Andrade, tiveram relação direta com o cascudiano Lundu de Collen Moore. O poeta paulistano em tom elevado ainda deu seu aval para Ferreira Itajubá o considerando “um dos poetas mais perfeitamente lírico, mais puramente poeta da geração de Bilac”.
Nas anotações que fez para as linhas de catimbós -no sentido antropológico do termo que não se refere nem a umbanda nem ao candomblé- coletadas em Natal, do rito da Jurema Sagrada, marcou definitivamente células rítmicas advindas de cantos mesclados de influências indígenas, africanas e europeias. Quando desembarcou na cidade priorizou contatar mestres catimbozeiros pois queria a experiência de “fechar o corpo”. Depois de se submeter participando da cerimônia a entendeu como charlatã, sincera, religiosa, repugnante, cômica, disparatada, comoventíssima... E poética entre outras referências. Se a memória não me compromete, contabiliza-se dezesseis linhas de jurema grafadas e transcritas as oralidades no livro Música de Feitiçaria no Brasil.
Percebeu a voz tenor, a respiração, os compassos, timbragens vocálicas, gestualidades do coqueiro Chico Antônio andante de Goianinha, da Penha e aspectos de evolução coreográficas. Estas foram detidamente examinados por alguém que além de musicista e pianista de formação estudava profundamente as Danças Dramáticas do Brasil. Por suas descrições se constata movimentos corporais do embolador. Era único! Considere-se que não há precedentes em emboladores solos ou duplados atuando ou fazendo representações cênicas. Nas observações Mário de Andrade apontou para o modo, para uma particular expressividade: ele cantava andando. Se ajoelhava. Mergulhava em transe numa proximidade ao estado de feiticeiros africanos possuídos. Girava sobre o próprio corpo e eventualmente rodava com mais dois coristas. Entoava cantos pagãos que se transformavam em arte divinatória.
Mário de Andrade insistiu numa certa “conceitualidade marxista do caju”. O pseudofruto é objeto de reflexão numa prosa filosófica onde a relação do sabor, da tatilidade, da oferta e da procura o coloca numa tal posição de troca entre o humano e o caju em si. Na degustação o caju se expõe numa propriedade “indescritível e unicamente compreendida por quem o conhece”. Tem hora e ambiente para se chupar/comer podendo ser preferencialmente na manhã dividindo o prazer do banho de rio. A sensibilidade do viajante etnográfico cabe nas relações do anacardium occidentale e outros alimentos do naipe do abacaxi, manga-rosa, abricó, pinha, maracujá... O caju por fim, afirma o turista aprendiz, não se doa de graça. Ele propõe permutas e por isso se coletiviza. A narrativa da crônica natalense, de 1929, descamba para receitas simples onde entra o gole de caninha, o queijo-manteiga e o pão embebido no leite de coco. Essa iguaria típica do litoral tem sido ignorada e caída em desuso nas mesas e cardápios regionais.
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