Cuscuz tradicional feito a base de floco de milho cozido no vapor

É Típico!

O que diz Câmara Cascudo sobre o Cuscuz, Patrimônio Imaterial da Humanidade

O prato foi introduzido no cardápio brasileiro pelos colonizadores portugueses e, hoje, é parte importante, sobretudo da cozinha nordestina

17 de dezembro de 2020

Os conhecimentos, as práticas e as tradições relacionadas ao preparo e ao consumo do cuscuz foram declarados, na quarta-feira (16) Patrimônio Imaterial da Humanidade pelo Comitê de Patrimônio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O pedido de reconhecimento foi feito em conjunto pela Argélia, Mauritânia, Marrocos e Tunísia –– países em que o prato é parte integrante do patrimônio cultural e consumido por praticamente toda a população, de todos os gêneros, de todas as idades, incluindo os imigrantes, e em todas as circunstâncias.

Mas o cuscuz não faz parte apenas da alimentação das sociedades das costas atlântica e mediterrânea da África. O prato foi introduzido no cardápio brasileiro pelos colonizadores portugueses e, hoje, é parte importante, sobretudo da cozinha nordestina.

No Brasil, o cuscuz pode ser encontrado em pelo menos três modalidades: o “marroquino”, feito com sêmola de trigo e normalmente servido com ensopados ou salada fria de legumes; o “branco”, doce e de tapioca, coberto com raspas de coco e, para quem gosta, com leite condensado por cima; e o “paulista”, com grandes pedaços de ovos, tomates e sardinha.

Mas, à parte a sofisticação que assumiu no Brasil, a refeição faz parte da dieta de várias famílias simplesmente servido em grandes flocos de milho e arroz. E, desde então, no Norte e Nordeste é parte integrante do café da manhã e do lanche da tarde em todos os estratos sociais.

Em “História da Alimentação no Brasil”, o etnólogo Luís da Câmara Cascudo define o Cuscuz como “a massa de milho, pilada, temperada com sal, cozida ao vapor d’água e depois umedecida com leite de coco. Com ou sem açúcar.”

Era, outrora, de feitura caseira e presentemente industrializado, vendido pelo Brasil inteiro, pela manhã e a tarde. Fazem-no também de mandioca, arroz, macaxeira (aipim), inhame, mas o de milho é consumido numa proporção de 95%, cotidianamente. Com manteiga, figura no café matinal ou na ceia frugal ao anoitecer. Dissolvem no leite de vaca, cuscuz com leite, sopinha gostosa e fácil.

No sul há o cuscuz paulista e também o mineiro, com recheio de peixe esfiado, crustáceos, molho espesso de tomates, constituindo refeição substancial. Sempre de milho.

O cuscuz, kuz-kuz, alcuzcuz, é prato nacional dos mouros na África Setentrional, do Egito a Marrocos. Inicialmente feito com arroz, farinha de trigo, milheto, sorgo, passou a ser de milho americano quando o Zea mayz irradiou-se pelo mundo ao correr do século XVI. Servem-no de milho e mel mas possui muitas formas: com caldo de carne e legumes, molhado na manteiga, com leite e açúcar, com passas de uvas, tâmaras, acompanhando carne ou pescado, ou valendo, sozinho, o almoço árabe. Parece certo que os berberes foram os criadores do cuscuz, como crê Karl Lokotsch, e o trouxeram para África, Ocidental, Central, Atlântica, quando desceram nas campanhas invasoras pelo Níger e Congo, há quase doze séculos.

Rui da Câmara informava do Marrocos de 1873 onde empregavam o leite de cabras, vacas, ovelhas, camelas, “misturando com o cuz-cuz, que é feito de farinha de trigo ou de cevada, e compõe o seu alimento mais comum” (154).

O cuscuz de milho foi solução brasileira, americana, onde o Zea mayz dominava. E também a adição do leite de coco que não ocorre em nenhuma região africana. Na África continuam os tipos clássicos de trigo, sorgo, sêmola de arroz, milheto, ao lado do milho aventureiro, comumente mesclado com carnes, crustáceos, legumes o que, no Brasil, não é o habitual, exceto no cuscuz paulista. É mais encontrado na África branca que negra.

O português conheceu e uso do cuscuz tendo-o dos berberes, de tão velho e largo contato histórico. Era prato popular em Portugal quando o Brasil apareceu na rota da Índia. No Juiz da Beira, “representada ao mui nobre e cristianíssimo rei D. João, o terceiro em Portugal deste nome, em Almeirim na era do senhor de 1525”, Gil Vicente faz o Escudeiro queixar-se do cruzado que Ana Dias gastara em cuscuz:

No Brasil, pela humildade do fabrico, era manutenção de famílias pobres e circulando entre consumidores modestos. Julgava-se comida de negros, trazida pelos escravos porque provinha do trabalho obscuro da gente negra, distribuído à venda nos tabuleiros, apregoado pelos mestiços, filhos e netos das cuscuzeiras anônimas. Algumas passaram à notoriedade, como a pernambucana de Palmares.

Receita do cuscuz paulista (Câmara Cascudo):

Receita de cuscuz à paulista (194). “Camarões – azeite ou gordura – cebola de cabeça – alho – cheiros-verdes – palmito – uma lata de petit-pois (se quiser) –dois ovos cozidos – pacote de farinha de milho – água salgada – pimentavermelha – tomates – uma lata de sardinhas.

Prepare um refogado de camarões em mais azeite ou gordura que o normal. Esse refogado também deve ter mais cebola de cabeça, mais cheiros-verdes e mais alho que o normal. Em outra panela refogue o palmito também com mais gordura do que comumente se usa. Junte uma lata de petit-pois. Cozinhe dois ovos e reserve. Pique em seguida uma grande quantidade de salsa, cebolinha verde e coentro. Quando os camarões e o palmito estiverem cozidos, retire do fogo e deixe esfriar. Escorra o molho. Ponha a farinha de milho num vasilhame.

Salpique com água salgada morna e amasse a farinha. Quando estiver bem amassada junte os cheiros-verdes e a pimenta bem picadinha. Vá pondo então o molho e experimentando o ponto. É preciso que a massa fique bem unida, onde os dedos deixem marca mas deve também se desprender das mãos. Se estiver esfarelando é só deitar uma colher (de sopa) bem cheia de gordura ou 3 a 4 colheres (de sopa) de azeite. Tome então o cuscuzeiro e molhe-o na água fria para evitar que pegue no fundo ao ser desenformado. Arrume no fundo e dos lados: rodelas de ovos cozidos, rodelas de tomates, camarões e azeitonas (estas também devem ser misturadas à massa). Fica muito bom enfeitar o fundo e os lados com sardinha de lata. Depois ponha uma camada de massa, uma de camarões, uma de palmito, outra de massa e assim por diante. A última camada deve ser de massa. É preciso enfeitar sempre os lados do cuscuzeiro até em cima.

Cubra então com folhas de couve ou com um guardanapo fino. Tampe com a tampa do cuscuzeiro e leve ao fogo. A parte de baixo do cuscuzeiro deve levar água até a metade. O cuscuz cozinha ao vapor dessa água. Pode-se improvisar um cuscuzeiro com um escorredor de macarrão e uma panela que se adapte ao fundo do escorredor. O cuscuz estará cozido quando as folhas de couve ficarem murchas ou quando o guardanapo ficar úmido. Pode-se juntar postas de peixe a este cuscuz. Faz-se da mesma maneira o cuscuz de frango, usando frango em pedaços, sem ossos e suprimindo-se o peixe e camarões.”

Informação de dama mineira: “O cuscuz em Minas (pelo menos o que se comia em casa de meu pai) é igual ao paulista. Mais usados o frango e a sardinha do que o camarão. Depois do cuscuz pronto e na hora de servir, rega-se fartamente com molho de tomates ou caldo de feijão.”

 

Com informações do Correio Braziliense e do livro História da Alimentação no Brasil, de Luís da Câmara Cascudo