Dálias permaneceu inédito mesmo após a publicação de Horto, obra mais conhecida da autora potiguar
Reportagens
Organizada a partir do manuscrito original, a obra que antecede Horto sai pela Coleção Escritoras do Brasil. Estudiosa analisa texto
07 de fevereiro de 2022
Ana Laudelina Ferreira Gomes *
Dálias foi o primeiro manuscrito de Auta de Souza ((1876-1901), o qual foi fechado em 1897, dando lugar à abertura de outro, o Horto, que era o único livro publicado da poeta e pelo qual ela é conhecida nacional e internacionalmente. No entanto, grande parte do Horto constitui-se de poemas provenientes do Dálias, seja de sua primeira edição, tal como organizada pela autora, seja nas edições que se seguiram baseadas na 2ª edição, esta organizada por Henrique Castriciano de Souza, irmão da poeta em 1910, quase uma década depois do falecimento da poeta, ocorrido a 7 de fevereiro de 1901.
Talvez Dálias não tenha merecido muita atenção até essa sua primeira publicação justamente por ter sido considerado uma espécie de pedaço do Horto, e um pedaço não tão bem trabalhado. Mas não é bem assim. Na apresentação que fiz ao Dálias, digo ter me surpreendido com o conteúdo do livro tomado na sua especificidade, separado do Horto e que remeteria a “singularidades de um feminino plural”.
Sobre a relação entre o livro Dálias e a biografia da poeta, faço uma síntese: “Sua vida foi matéria para sua poesia, mas não é um retrato de acontecimentos que viveu. Sua imaginação poética é a lente pela qual filma o acontecer da vida, na base imaginação estão suas emoções e, na fonte das emoções, um corpo-ampulheta a marcar a vida que se esvai a cada tosse, a cada falta de ar, a cada dor. Ter que se despedir da vida tão cedo, da vida que tanto amava, da juventude que tanto gostaria de viver em plenitude, talvez essa tenha sido sua maior dor, e, por isso, pôde sentir e expressar tão bem a dor das mulheres moribundas e das que perderam entes amados. Falar de si, conectando-se a outras mulheres, falar delas reconectando-se aos seus sentimentos, medos e desejos, é assim nossa empática Auta”.
Dálias foi o manuscrito dos primeiros registros poéticos de Auta, nele ela foi se tornando poeta e criando força para encaminhar seus poemas à publicação em jornais e revistas literárias locais, do nordeste e nacionais. Foi também durante a escritura do manuscrito Dálias que Auta viveu seu romance com o promotor público João Leopoldo da Silva Loureiro, a quem, segundo Luís da Câmara Cascudo, os irmãos da poeta não faziam gosto de um compromisso da irmã, e possivelmente tenham criado dificuldades para a continuidade do namoro. Assim escrevi na apresentação do livro sobre os sentimentos da poeta a respeito:
“A paixão por João Leopoldo parece ter sido avassaladora, e Auta entregou-se a ela fortemente. Mas acabou por ter que aceitar o fim da relação, que aconteceu antes de julho de 1896, pois é quando ela escreve [o poema] Minh’alma e o verso, que, para Cascudo (2008), seria o revide ao golpe do romance rompido, ‘desviando o motivo do seu lirismo, a razão da tristeza poética. [...] Não sabemos se o rapaz se mostrou ou não sensível aos apelos poéticos da moça. Em 1995, ele se licenciou e deixou Macaíba, acabando por falecer a 12 de junho de 1897 numa cidade paraibana (CASCUDO, 2008). E é justamente em 1897 que Auta desiste do Dálias, encerra-o e abre outro manuscrito, o Horto [...]. Apesar do fim do relacionamento dos dois ter acontecido antes da morte de João Leopoldo, esta deve ter enchido de dor o coração da poeta, também por então saber que qualquer resquício de esperança que ainda persistisse se extinguia definitivamente”.
Saliento ainda que os poemas que Cascudo associou ao romance rompido não foram transferidos para o novo manuscrito, o Horto. Teriam ficado dispersos na imprensa, alguns já tinham sido esquecidos até Cascudo trazê-los de volta no seu livro Vida breve de Auta de Souza, de 1960. Acredito serem estes poemas, entre outros poucos, os mais importantes para mostrar um veio feminista, coisa que quase não foi suscitada pelo Horto [..]”, tendo inclusive contribuído para que se cristalizasse uma representação de Auta de Souza quase que exclusivamente religiosa ou mística. Independente da marca religiosa, cristã, católica ou mística que se possa atribuir a parte dos poemas de Auta de Souza, saliento ainda que ela está muito mais manifesta no livro Horto do que no livro Dálias. E essa seria uma grande e importante diferença entre os dois livros. No meu entendimento, o manuscrito Horto teria nascido nesse ambiente de comoção, de perda do amado, de luto, dor, descrença e apego religioso na busca pelo enfrentamento dessa situação tão exigente do ponto de vista emocional.[...]. Menos de um ano depois da publicação do livro, as crises de tuberculose pioraram e Auta veio a falecer na madrugada de 7 de fevereiro de 1901, em Natal [...]”.
Sobre a condição negra de Auta de Souza, faço algumas imersões no texto de apresentação. Informo haver pesquisas que veêm em sua poesia “um movimento de enfrentamento da opressão negra no sistema escravista e o conseguinte enfrentamento político e libertação pela palavra que remeteria a marcas de afrodescendência”, como seria o caso da estudiosa norte-americana Monique-Adelle Callahan, em livro publicado em 2011 sobre três poetas afro-descendentes nas Américas (do norte, central e do sul), entre elas, Auta de Souza. Falo ainda sobre o branqueamento da representação que se costuma ter de Auta de Souza, coisa engendrada pela sociedade e cultura não só de seu tempo, mas atravessando quase todo século XX.
Lembro também da conhecida relação da figura de Auta com o espiritismo, desde, pelo menos, 1932, com a publicação da antologia Parnaso de Além Túmulo, com poemas psicografados por Francisco Cândido Xavier, entre eles, alguns atribuídos ao espírito desencarnado de Auta de Souza.
Quanto ao caráter popular da poesia de Auta, o associo à musicalidade de seus poemas, confluindo em três diferentes cancioneiros, um tradicional, com base na tradição oral desde a época que Auta ainda vivia, outro contemporâneo, que não tem raiz na oralidade e é de grande diversidade de estilos, e um terceiro, espírita, feito a partir de poemas psicografados atribuídos à poeta. Esse veio popular da poesia de Auta, muitas vezes ligada ao trovadorismo medieval, é perspectivado na minha apresentação, vendo-o como mote para pensá-la como uma griot moderna, a reafirmar sua raiz africana, mesmo que de modo inconsciente.
Voltando ao diferencial entre Dálias e Horto atento ainda para o fato de que o primeiro, por ter permanecido como manuscrito até o momento presente, não ter contado com o peso das interpretações dos grandes comentadores, como Olavo Bilac e Alceu Amoroso livro – que fizeram o Prefácio da 1ª e da 3ª edição do Horto – nem de Jackson de Figueiredo, Nestor Victor, Perillo Gomes, entre outros, que elevaram o livro Horto à expressão maior das letras femininas cristãs. Diferentemente do Horto, sem esse conjunto de poderosas lentes, Dálias se coloca como um objeto poético mais leve para ser fruído mais livremente:
“Dálias é o livro da moça Auta se fazendo poeta e da moça-mulher que conhece o amor e a desilusão. Dálias é, nesse sentido, um livro libertador. Deixa-nos livres para perceber melhor essa outra Auta de Souza, mais próxima do mundo das mulheres do século XXI. A irmandade entre mulheres ainda não foi destruída, apesar dos esforços da cultura em querer colocar-nos umas contra as outras. E o apelo de Auta na contramão dessa estratégia patriarcal de nos dividir para nos debilitar é muito forte. [...]. Temos no Dálias uma Auta que escreve para nós mulheres, preocupada que está consigo mesma, mulher, mas não só. Auta olha para muitas das mulheres à sua volta, as mocinhas, as viúvas, as noivas, as mães... Auta está de olho nas mulheres de seu tempo, e através de seus poemas nos sensibilizamos para olharmo-nos umas para as outras, mulheres de hoje. Os tempos mudaram, nossa luta avançou, mas corremos o risco de nos perder umas das outras, de perder nossa força enquanto coletivo político e espiritual. "Auta olha fundo nos nossos olhos, lê nossos olhares, sente nossos perfumes e os pequenos detalhes com que embelezamos a nós mesmas e ao mundo". Observa com atenção o laço de fita atado ao cabelo das moças de seu tempo, a trança bem posta e iluminada de cabelos loiros ou pretos, percebe um jeito de rezar, de chorar, de sofrer e de viver o luto das pessoas amadas. Diz a nós mulheres contemporâneas:#tamojuntonessa”.
Por fim, sintetizando, digo acreditar que o diferencial substantivo entre Dálias e Horto, é que em Dálias “o que prevalece é a vontade de viver, que faz um contraponto significativo à impotência, ao sofrimento, à dor física, ao desespero e à descrença”, Auta, como Afrodite, a antiga deusa grega do amor e da beleza, vem em Dálias para espalhar amor e encantamento. E além da vontade de viver, em Dálias prepondera “a vontade de criar, de fazer da palavra fontes de vida e de superação das mágoas, dores e sofrimentos”.
A maternidade a que Cascudo faz alusão como algo importante na poesia de Auta, é por mim percebida em Dálias numa dimensão arquetípica “o medo da perda dos filhos pela mãe e desta pelos filhos talvez seja o tom principal dessa maternidade personificada; no caso, perda para a morte, o que traz uma dimensão trágica. A ansiedade e a dor envolvidas nessa perda costumam aparecer em alguns poemas do Dálias. Imagens que relacionam mães e filhos (moças, meninas, crianças) são muitas”.
Essa sensibilidade de Auta para a morte, o morrer e a finitude da vida não poderiam ser mais atuais nesses tempos bárbaros e trevosos nos quais vemos, por exemplo, no Brasil, a vida humana a valer muito pouco ou quase nada, seja pelo descaso de governantes descomprometidos com as causas públicas mais urgentes, seja pela violência sem freios do estado e ou de parte ensandecida da sociedade ensandecida. Nem uma pandemia mundial como a que vivemos há quase dois anos parece ter sido capaz de nos ajudar a refletir sobre a importância da vida, de toda vida, e sobre a ritualização necessária da morte.
Além de Afrodite e de Gaia, ligadas a outras deusas da Grécia Antiga – Deméter e Coré-Perséfone - que estariam presentes em poemas do Dálias e como esse universo de relações míticas pode ser estendido a outras tradições: “Muito ainda poderíamos falar sobre os poemas do Dálias e sobre a figura de Auta que nos aparece por meio deles. Outras deusas e deuses poderiam ser mobilizados, inclusive de outras culturas além da grega, berço da civilização ocidental e da mitologia arquetípica com a qual estamos dialogando neste texto”.
Espero que com estas minhas impressões, o leitor se sinta seduzido a ler o texto completo da minha apresentação ao Dálias, depois, é claro, de apreciar demoradamente cada página de poemas que compõem esse delicioso livro de Auta de Souza.
Além da apresentação, tenho crédito na pesquisa e na co-elaboração das Notas em parceria com a bibliotecária Stela Maria Vaz Santos Valadares, que também faz o preâmbulo. O prólogo é do historiador Anderson Tavares de Lyra, presidente da Academia Macaibense de Letras, que tem Auta de Souza como patrona.
Uma dica: além do livro impresso, pode-se baixar o arquivo digital do mesmo em e-book através do site da Biblioteca do Senado, e gratuito!
Vale destacar que nesta segunda-feira (7 de fevereiro) é o aniversário de morte da poeta norte-rio-grandense
* Ana Laudelina Ferreira Gomes é estudiosa e divulgadora da biobibliografia, memória e obra de Auta de Souza há mais de duas décadas. É autora da apresentação da obra “Dálias”, recém publicada pela Coleção Escritoras do Brasil, v. 8, da Biblioteca do Senado Federal e que conta com a assessoria de pesquisa da titular. Ocupa a cadeira Auta de Souza na Academia Macaibense de Letras e participa do coletivo feminista Muherio das Letras Zila Mamede. É professora titular de sociologia da UFRN e colaboradora de seu PPGCS/CCHLA, seu Grupo de pesquisa Mythos-logos.
Confira a ficha técnica
Dálias | Souza, Auta de, 1876-1901
Publicador : Brasília : Senado Federal
Data de publicação : 2021
Descrição física : 329 p.
Série : Coleção escritoras do Brasil ; v. 8
Assuntos : Literatura, Brasil | Poesia, Brasil
Responsabilidade : Auta de Souza ; preâmbulo e notas: Stella Maria Vaz Santos Valadares ; prólogo: Anderson Tavares ; apresentação, pesquisa e notas: Ana Laudelina Ferreira Gomes
ISBN : 9786556761817
Endereço para citar este documento : https://www2.senado.gov.br/bdsf/handle/id/593416
Direitos autorais : Attribution-NonCommercial-ShareAlike 3.0 Brazil
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