Campina Grande no final dos anos 1960. Rua Maciel Pinheiro
Colunas
Poesia, memória, amizade, tudo junto com a lembrança de Léo Sodré e Bob Motta.
19 de outubro de 2022
Clotilde Tavares
Tem dias em que estou simplesmente sem tempo para nada. São pessoas que dependem da minha atenção exigindo cuidado, os amigos e amigas aniversariando e demandando telefonemas de parabéns que terminam demorando uma hora, consultas e sessões com esse povo que me mantém viva e produzindo – médicos, psicólogos, nutricionistas e fisioterapeutas –, meus próprios prazos de trabalho se esgotando, as deadlines batendo à porta ou piscando na tela do notebook, sem contar as minhas próprias necessidades de sono, descanso e lazer, que tenho que satisfazer senão tudo desmorona.
Nessa conjuntura, um ou outro compromisso ou obrigação precisa ser adiada, suprimida ou não cumprida da maneira habitual. É por isso que hoje vou lhe oferecer um texto escrito há uns quinze anos, e publicado no meu livro “Notícias da Existência do Mundo” (Escribas, 2017). Já fiz isso outras vezes, e penso que continuarei fazendo, mas hoje me deu vontade de fazer esse comentário. Uma coisa curiosa a respeito desse texto é que todos os citados nele, incluindo as damas da noite citadas nos versos, já são falecidos. Papai, Mamãe, Omega, os queridos Bob Motta e Léo Sodré, todos já habitam entre as estrelas. E a Campina Grande desses tempos de outrora também já é lenda, cinzas, passado.
Um dia desses, discutia-se em um dos grupos que frequento na internet sobre o significado das palavras “pantim” e “muganga”. Passei minha infância ouvindo as duas palavras, incorporadas no rico dialeto caririzeiro-paraibano que Mamãe falava. Muganga é trejeito fácil ou corpora, careta. Já “pantim” é difícil de definir. É quando você faz algo para “distrair o inimigo”, ou seja, quando negaceia, disfarça, enrola, ou falsifica uma ação para obter algo que não quer explicar diretamente.
O diálogo abaixo, travado entre meus pais numa noite, explica melhor:
- Nilo, onde tu tava até uma hora dessa? – Mamãe, direta e nada sutil, atacava com a pergunta.
- Mas minha filha, é somente uma da manhã.
- Sim, mas onde tu tava?
- Você sabe Fulano? – começava Papai. – Presidente da Associação Comercial? Pois eu encontrei com ele ontem…
- Não tou falando de ontem, mas de hoje. Onde é que tu tava?
- Espere, eu preciso lhe explicar. Você sabe que em Campina, desde que o prefeito mudou, que todos esses órgãos, como a Associação Comercial, a Federação das Indústrias, a…
Era aí que mamãe interrompia, já impaciente:
- “Ômi”, deixa de pantim e diz logo onde é que tu tava até uma hora dessa!
(…)
Postei esse diálogo no grupo para exemplificar o que era o tal do pantim. Aí Leo Sodré, outro participante, escreveu:
- Mas, onde Nilo estava mesmo? É bem capaz de ter levado Omega nessa farrinha… (Omega era o avô de Leo, amigo de Papai).
Eu escrevi:
- Nilo devia estar com Omega no cabaré de Zefa Tributino, ou na Unidade Moreninha. Os dois assinavam ponto num ou noutro lugar toda noite.” (As referências são à vida noturna de Campina Grande na década de 1950/60)
Aí Bob Motta, que é poeta, escreveu:
Nilo tava c’á bixiga, (A)
e se sintindo no céu. (B)
Lhe juro, Crotilde, amiga, (A)
foi de beréu in beréu. (B)
Teve lá no Canaríin, (C)
dispôi saiu de finíin, (C)
mode qui num tava só; (X)
duis putêro de Campina, (D)
visitô os das Bunina, (D)
da Prata e Bodocongó… (X)
(Veja o esquema de rimas, identificadas pelas letras maiúsculas: o 1º verso rima com o 3º; — o 2º com o 4º; — o 5º com o 6º; — o 7º com o 10º; — e o 8º com o 9º. A estrofe é uma décima que comporta variados esquemas de rima, sendo este citado apenas um deles. A métrica é sete sílabas, redondilha maior, que você reproduz pronunciando em voz alta as palavras “ma-ra-cá, ma-ra-ca-tu”. Além disso, Bob Motta usa a chamada “linguagem matuta”, que consiste em um “português estropiado” – que não é usada nem pelo cantador de viola, nem pelo autor de folhetos de cordel e nem por mim, que procuramos usar sempre o português correto, mas é característica da chamada “poesia matuta”, cujo principal representante foi o poeta Catulo da Paixão Cearense. Forneço essa explicação para que as pessoas entendam como é complexa e rica a arte da poesia popular nordestina.)
Eu, que não deixo verso sem resposta, respondi seguindo o mesmo esquema, mas no calor do improviso deixei escapar a rima da terceira linha.
Nilo não tava sozinho
Na rota da sacanagem
Com o seu amigo Omega
Em total camaradagem
Lá em Zefa Tributino
Beberam uísque do fino
Com Paraguaíta e Nina
E com Chiquinha Dezoito
Pintaram o sete e o oito
Nos cabarés de Campina…
Bob Motta escreveu, repondendo:
Nilo tava de zonzêra,
lá na Ìndios Carirís,
bebeu quage a noite intêra,
no Canaríin, pidiu bis.
Na Unidade Moreninha,
lá nais Bunina intêrinha,
o peste num tava só;
tava prá lá de intêro,
foi in tudo qui é putêro,
da Prata e Bodocongó…
Aí eu fechei:
E quando chegou em casa
Mais pra lá do que pra cá,
Cleuza já tava na brasa
E começou o fuá:
- Ô Nilo, conte direito!
Me conte de todo jeito,
Eu lhe peço mesmo assim!
Onde tu tava, maldito?
Tu acha isso bonito?
Ômi, deixe de pantim!
Sobre a “Unidade Moreninha”: http://cgretalhos.blogspot.com/2014/09/curiosidade-unidade-moreninha.html#.Y07AO3bMKZ4
http://linktr.ee/ClotildeTavares clotilde.sc.tavares@gmail.com
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