Londres e o lockdown: isolamento social total transformou o centro em um lugar impensável

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Desolé, você está sendo desconvidado

Em meio a contagem regressiva para a vacina, Márcio Delgado relembra os primeiros meses de lockdown e o cancelamento em massa de eventos

04 de dezembro de 2020

Marcio Delgado – Especial de Londres

Em mais de uma década cobrindo eventos em toda a Europa, de festivais de filmes ao circuito Londres-Paris-Milão de semanas de moda, este foi o primeiro ano que eu fui desconvidado para um desfile.

Não que eu tenha feito algo errado.

Os convites para os desfiles da temporada outono-inverno, que sempre acontecem na Europa em fevereiro, chegaram com várias semanas de antecedência, como era de se esperar. Mas o que não estava no cronograma da moda é este tal de COVID-19.

Alguns estilistas improvisaram.

Outros cancelaram os seus eventos completamente durante as primeiras semanas de moda do ano.

E outros se reinventaram, como Giorgio Armani, que na terceira semana de fevereiro desconvidou o público e a imprensa, fechou as portas, e fez uma transmissão ao vivo de um desfilo isolado durante a semana de moda de Milão. Esta foi a primeira vez que a grife italiana cancelaria um evento em seus 45 anos de existência – e o formato digital se tornaria a norma para um novo normal.

A esta altura, várias outras cidades da Itália já haviam decretado estado de isolamento social total, com a população tendo que ficar confinada em casa em tempo integral, exceto para ir à farmácia ou supermercado. A ficha, no entanto, demorou um pouco mais a cair em outros países vizinhos: apenas no dia 17 de março o presidente da França, Emmanuel Macron, anunciaria o lockdown francês.

Eu escapei por poucos dias de ficar preso sem poder sair de Paris, onde eu deveria estar trabalhando até o dia 15. Quando começaram a circular histórias de pessoas tendo seus voos e hospedagem cancelados, eu empacotei as minhas coisas, comprei uma passagem de trem e voltei as pressas para Londres na primeira semana de março. As plataformas da estação Gare Du Nord, de onde sai o Eurostar para a Inglaterra, estava lotada de gente desnorteada com malas, pacotes e crianças – algo que me lembrou cenas de filmes com pessoas tentando fugir de navio durante a primeira e segunda guerras.

Apenas no dia 23 de março o primeiro-ministro Britânico Boris Johnson apareceria em cadeia nacional para anunciar que o direito de circular livremente havia terminado com o aumento do número de casos do coronavírus o país.

Aeroportos foram fechados. Trens pararam de circular entre os países próximos. Escolas, academias e salão de beleza encerraram seus expedientes sem saber ao certo quando reabririam.

Boris aprovou o lockdown sob pressão política porque, assim como o presidente brasileiro, por meses ele não levou o COVID-19 a sério, frequentemente sendo visto sem usar máscara de rosto e apertando a mão de aliados e eleitorado em eventos pelo país a fora. Assim como Bolsonaro, Johnson acabaria contraindo o vírus que já matou mais de 1 milhão de pessoas ao redor do mundo em 2020.

“O maior desafio este ano foi manter a sanidade mental. O corpo e a mente nunca trabalharam tanto no limite ou acima deles. Não houve um dia ou situação fácil. Não tive tempo para me recompor de nada, para ler, para arrumar/consertar algo, me dedicar a alguma atividade para diminuir a pressão ou os efeitos dela. Foi como acordar, enfiar os pés num tênis de corrida e começar uma maratona, comendo, bebendo, tomando banho e indo ao banheiro enquanto corria.” – relembra a publicitária Tereza Ratts que há 13 anos mora em Nantes, no Oeste da França.

FRASE: "Toda essa nova situação me fez

atualizar os meus parâmetros pessoais

de "o que é possível fazer em 24 horas", disse Tereza Ratts

O que levou a potiguar a trocar a terra do sol pelo clima francês, bem menos tropical, foi o desejo de descobrir a língua de Molière e o Velho Mundo. Este ano ela teve que descobrir uma nova forma de ver o mundo.

“A primeira vez em que pus os pés numa agência de publicidade foi aos 17 anos. Aos 35, me dei conta que até então nunca havia feito algo de (realmente) diferente na vida. Então fiz as malas, passei a chave no apartamento e cruzei o oceano em busca de aventuras, de vida.

Sem falar uma só palavra sequer em francês, desembarquei em Nantes com a intenção de ficar por até três anos, mas o destino quis mais.”

Apesar de morarmos no mesmo continente por mais de uma década, vindos da mesma cidade, e tendo tantos amigos em comum, eu e Tereza ainda não conseguimos nos ver. Sempre faltava tempo. Daí veio 2020 para mostrar que a nossa relação com o que chamamos te tempo estava toda equivocada.

“Há tempos não sei o que é sobrar tempo.” – conta Tereza. “Mas toda essa nova situação me fez atualizar os meus parâmetros pessoais de "o que é possível fazer em 24 horas", inclusive rever o significado de possível e até mesmo do impossível. Entre um confinamento e outro, de julho a setembro, pudemos circular quase que livremente (exceto pelas máscaras e a ausência de contato físico) pelas ruas, cidades e até países do continente. Das coisas legais que eu vou lembrar deste ano e que eu não poderia imaginar que seriam assim, o meu aniversário quarentemado vai ser uma delas. Eu fiz bolo, eu organizei a casa, a mesa, abri champagne e convidei os amigos que vinham me parabenizar para festejar comigo, à distância, através do zoom. Criei até um grupo onde nem todo mundo se conhecia pessoalmente e batizei de confiNANTES. Nós não estamos mais tão sós. E já não somos mais os mesmos, para o pior e para o melhor.”

E acreditando, seguimos.

*Márcio Delgado é jornalista e Coordenador de Marketing de Influência morando em Londres, Reino Unido

@marcio_delgado