"Vejo a literatura como uma arte, não como negócio"

Agenda Cultural

Dia Nobre: 'Aos poucos estão percebendo que a diversidade de gêneros e sexualidades só têm a agregar

Nascida em Juazeiro do Norte-CE, a escritora e historiadora aborda a diversidade em suas obras

03 de julho de 2023

Cefas Carvalho
 
Nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri, no estado do Ceará, Dia Nobre é escritora e historiadora, atualmente trabalhando em Petrolina, Pernambuco, como professora universitária. Segundo suas próprias palavras, sempre gostou de ouvir histórias, fossem as aventuras narradas pelo seu avô ou os ditos que ouvia dos transeuntes, enquanto acompanhava sua avó nas romarias. Essa mesma curiosidade que, ainda na infância, a levou a participar de grupos de leitura na biblioteca do Sesc. Nos anos 2000, integrou a publicação de folhetos lançados pelo grupo Sociedade dos Cordelistas Mauditos que apresentavam uma postura crítica não só sobre o discurso do “descobrimento” do Brasil, mas também em relação à forma como o folheto tradicional representava as mulheres, negros e gays. Publicou ainda em pequenas coleções do Projeto Performance Poética, também no Sesc de Juazeiro do Norte. 
 
Em 2002 iniciou o curso de História na Universidade Regional do Cariri (URCA-Crato-CE), onde seu prazer de contar e ouvir narrativas, tornou-se sua profissão. Após ler o livro Milagre em Joaseiro, do Ralph Della Cava, e perceber o apagamento da história das mulheres da história local, decidiu pesquisar a trajetória social das mulheres no Cariri, trabalhando principalmente com a categoria de análise de gênero, encontrando não só o tema da sua pesquisa acadêmica, que a acompanhou por mais de dez anos (da graduação ao doutorado), mas também viu a oportunidade de trazer a narrativa esquecida e marginalizada de Maria de Araújo, mulher negra e pobre, do sertão do Cariri. A vida e adversidades enfrentadas pela beata, renderam-lhe dois livros, O Teatro de Deus, resultado da dissertação do Mestrado (2010, UFRN) e Incêndios da Alma, tese do doutorado (2014, UFRJ), este último vencedor de três prêmios, incluindo o Prêmio Capes de Teses em 2015. 
 
Após o doutorado, em 2015, mudou-se para Petrolina, no Pernambuco, depois de assumir o cargo de professora na UPE. Entre 2016 e 2017, foi colunista do Site Ponto Crítico publicando textos sobre feminismo, cultura política e sociedade. Em 2019, durante o pós-doutorado na Universidade Federal do Maranhão, decidiu iniciar um novo projeto de leitura de obras produzidas por mulheres. Fundou um grupo de pesquisa centrado na discussão de estudos feministas na universidade em que trabalha e no mesmo ano coordenou o Clube Lesbos, no qual eram discutidas obras de autoras lésbicas e bissexuais. Em junho de 2020 lançou o seu primeiro livro de poesias pela Editora Penalux. Ainda em 2020, participou da antologia Visíveis e teve o original do seu segundo livro, "Boneca Russa", finalista no Prêmio Caio Fernando Abreu do Festival Mix Brasil. Em 2021 publicou o livro pela Editora Penalux com um novo título, No útero não existe gravidade. Nesta entrevista, Dia falou sobre sua trajetória, obras e diversidade. Confira:

Você nasceu em Juazeiro do Norte no estado do Ceará mas morou em outras cidades do Nordeste, como Natal,  e de outras regiões do país. Como essas mudanças geográficas impactaram sua visão de mundo e sua literatura?
Sair da minha cidade natal me proporcionou uma abertura de horizonte para outras culturas, outros modos de falar e de viver. A verdade é que sempre me senti estrangeira no Cariri. Sair do Cariri foi a melhor coisa que fiz porque o mundo me ajudou a perceber esse lugar de modo distinto e até, a amá-lo mais.


Você já declarou que sempre gostou de ouvir histórias, fossem as aventuras narradas pelo seu avô ou os ditos que ouvia de transeuntes, enquanto acompanhava sua avó nas romarias. Como essa literatura oral e a cultura popular te influenciou?

Eu cresci com minha avó Ana Guerra recitando literatura de cordel que ela sabia de cor como Coco verde e melanciaPavão Misterioso e, principalmente, as histórias religiosas de santas e mártires. Nesse aspecto, fui muito influenciada pelas narrativas de encantados, espíritos e almas do purgatório. Esses temas alimentaram não somente minha escrita acadêmica, como hoje são base também para a minha ficção.

Sua pesquisa acadêmica, que a acompanhou da graduação ao doutorado, resgata a narrativa de Maria de Araújo, uma mulher negra e pobre, do sertão do Cariri. Como foi registrar essa história nas obras, O Teatro de Deus, resultado da dissertação do Mestrado e Incêndios da Alma, tese do doutorado, este último inclusive vencedor de prêmios?

Quando eu comecei o curso de História, eu desejava estudar mulheres subversivas e flertava com as histórias das bruxas perseguidas pela Inquisição. Acabei encontrando na história da minha própria cidade uma bruxa, a Maria de Araújo, que a despeito de todas as dificuldades, conseguiu forjar uma trajetória de santidade e enfrentar desde os padres locais até os cardeais da Santa Sé.  O que mais me intrigava era o fato de existir toda uma historiografia (embasada sobre os mesmos documentos que eu consultei à exceção do material dos Arquivos Vaticanos) sobre o padre Cícero e o Juazeiro e pouco ter sido dito sobre Maria de Araújo, que aparecia como uma personagem menor, coadjuvante. O resultado, além dos livros, rendeu artigos publicados fora do Brasil e citação no ENEM de 2022. Isso demonstra a relevância de um trabalho pensado por mais de dez anos.  Uma pesquisa importante que utilizou fontes de mais de dez arquivos, incluindo o Archivio della Congregazione per la dottrina della fede e Biblioteca Apostolica Vaticana no Vaticano e uma coleção de mais de 1500 documentos, uma parte deles inéditos até a publicação da tese. Acredito que é uma grande contribuição não só para a história de Juazeiro, mas para a historiografia sobre as mulheres no Brasil.


Em 2021 você publicou pela Editora Penalux "No útero não existe gravidade". Como foi o processo de criação e publicação desse livro, que colheu elogios?  

Eu sempre amei a literatura e nunca deixei de escrever ficção, no entanto, somente em 2020 pensei em investir na publicação desses escritos. A partir do incentivo da escritora Jarid Arraes que fez a ponte com o Wilson e o Tonho da Penalux eu publiquei o livro que foi escrito no primeiro ano da pandemia. Trata-se de uma série de narrativas curtas inspiradas em fotografias do meu álbum de infância. Em grande maioria são textos autoficcionais que mesclam memórias e sonhos e foi um pequeno ensaio sobre o tipo de literatura que eu gosto e quero escrever. Nele eu falo sobre o abandono materno que sofri na adolescência, sobre a descoberta da sexualidade e sobre as dificuldades de ser uma pessoa neuro divergente em um mundo neurotípico.

Acredita que existe uma literatura especificamente feminina, como só pode ser produzida por mulheres? Ainda sobre o tema, homens em geral leem o que mulheres escrevem?

Não. Não concordo com o termo “literatura feminina” porque acredito que os temas que permeiam a literatura produzida por mulheres são temas igualmente universais. O ponto para mim é: se assumir enquanto uma mulher que escreve é um ato político. Quantas escritoras não tiveram, ao longo da História, que usar pseudônimos masculinos ou simplesmente serem anônimas para poderem publicar e serem lidas?

O destaque, por exemplo, que a literatura hispânica tem tido ultimamente, com nomes como Mariana Enriquez, Monica Ojeda, María Fernanda Ampuero e Samantha Schweblin e o último Prêmio Jabuti que na categoria romance teve cinco autoras finalistas com obras de peso (Aline Bei, Natalia Borges Polesso, Andréa Del Fuego, Tatiana Salem Levy e a vencedora Micheliny Verunschk) são uma evidência de que a literatura feita por mulheres é diversa e pujante. No entanto, ainda precisamos trabalhar muito para sermos vistas, pois acho que a régua que nos avalia é muito mais exigente. Não basta sermos boas, temos de ser perfeitas.

O recorte de gênero, raça e classe, então se torna essencial para entendermos que quanto mais essas estruturas de opressão se interseccionam, mais difícil é furar a bolha. Ser homem, branco, rico e sudestino te dá infinitamente mais vantagens que ser uma mulher. Imagina então, os desafios para mulheres negras, pobres ou nordestinas. Com certeza, a montanha que escalamos não é a mesma.

Dentro da minha bolha conheço muitos homens que leem e divulgam a obra de mulheres, mas ainda não acho que seja suficiente. Não temos o mesmo espaço e ainda precisamos de uma mulher que tenha destaque na literatura nacional como muitos autores contemporâneos conseguem ter. Não adianta muito nos ler depois que morremos, queremos ser lidas ainda vivas.

Como observa o mercado editorial brasileiro atualmente, principalmente em relação a outras mulheres e LGBTQIA+?

Acho que o mercado está mudando paulatinamente. Aos poucos estão percebendo que a diversidade de corpos, gêneros e sexualidades só têm a agregar. As novas gerações estão demandando isso. Também começo a ver um deslocamento do olhar para as regiões norte, nordeste e centro-oeste que sempre foram muito esquecidas nas produções nacionais. Acredito que isso se deve muito às iniciativas independentes como o Leia Mulheres, criado pela Juliana Gomes, Juliana Leuenroth e Michelle Henriques que desde 2015 fazem circular a literatura produzida por mulheres. Meu livro No útero foi lido em mais de vinte clubes pelo Brasil inteiro, por exemplo. Pequenas editoras dedicadas à publicação de mulheres, pessoas não-brancas e à diversidade sexual e de gênero também têm um enorme papel nessa mudança. Ainda não é o ideal, mas estamos caminhando.

Como avalia o papel das redes sociais na divulgação de quem escreve literatura? 

Acho que há pontos positivos e negativos. Há um grupo de leitoras e leitores que fazem um trabalho muito importante de leitura, crítica e divulgação de obras diversas. Isso é fantástico porque esses influenciadores atingem um público que, muitas vezes, as autoras e autores não conseguem chegar, por falta de tempo ou técnica no manejo das redes. Por outro lado, vejo que há uma supervalorização disso, no sentido de que o trabalho (e o custo) de divulgação se torna mais importante que o de escrever.

Eu sou uma escritora e, sinceramente, gostaria de só precisar escrever e não ter que pensar na divulgação, marketing e promoção de posts. Os “likes” deveriam ser uma consequência da qualidade da minha escrita e não do quanto eu posso pagar para estar na mídia o tempo todo. Eu desconfio muito de quem vende soluções mágicas para autores “fazerem sucesso” nas redes. Para mim, não deveria ser o ponto da literatura porque eu vejo a literatura como uma arte e não como um negócio.