Diários de Lockdown relembra o dia a dia de brasileiros (e potiguares) durante a pandemia na Europa

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Diário de Lockdown: Palco na sala, sonhos em banho maria

A única coisa certa foi o Facebook enviar notificações de quem estava ao vivo e lembrete dos shows que eu fui no passado e postei

29 de dezembro de 2020

Marcio Delgado | Especial de Londres
#Brasileirospelomundo #BrasileirospelaEuropa #diariosdeLockdown 

Nos últimos meses a única coisa certa na vida foi o Facebook enviando dois tipos de notificações: aviso de quem estava ao vivo, pela 138ª vez no dia, e lembrete dos shows que eu fui no passado e postei na minha linha do tempo. Eram outros tempos.

O problema é que em 2020, confinados em casa e observando o mundo pela janela e pela tela do computador, escabreados como gato passeando no teclado do seu notebook quando você tenta trabalhar, a última coisa da qual precisávamos é da plataforma de Mark Zuckerberg nos atormentando com lembranças de um mundo onde as pessoas viajavam e iam a shows. Uma assombração digital disfarçada de túnel do tempo, como se este ano tivesse sido um #tbt infinito.

Para quem depende da arte para garantir o pão de cada dia – ou estava planejando abrir negócio nas áreas de gastronomia e entretenimento – ser lembrado de que o público havia sido posto de castigo em casa, bem longe de bares, restaurantes e casas de shows, foi também um lembrete de que nessa vida não há planejamento ou bola de cristal que possa prever o estrago causado por uma pandemia global.

“Como sempre trabalhei com projetos culturais - e a comida brasileira é muito apreciada na Europa - após anos dando aula desde que cheguei a França eu decidi abrir um pequeno negócio onde eu pudesse misturar eventos e gastronomia, duas das minhas paixões. E muitos meses de estudo e preparo depois, coloquei como meta para 2020 abrir o @casadeamelianantes. Essa era a minha prioridade quando o ano começou.” – relembra Adriana Silveira, produtora cultural e fotógrafa formada em jornalismo pela UFRN. 

Antes de decidir largar tudo em 2013 e recomeçar uma nova vida em Nantes, cidade com menos de 680 mil habitantes e onde nasceu Jules Verne, um dos precursores da literatura de ficção científica com obras como "A Volta ao Mundo em Oitenta Dias” e "Vinte Mil Léguas Submarinas", Adriana passou anos trabalhando e convivendo com o trânsito lento de São Paulo. 

E apesar dos livros de Verne preverem alguns meios de transporte bem mais rápidos que apenas seriam inventados muito depois, como naves espaciais e helicópteros, nem a imaginação fértil do escritor francês poderia projetar um ano em que todos nós passaríamos meses a fio viajando apenas entre os cômodos das nossas próprias casas.

“Tudo mudou este ano, para todo mundo. Eu achei que a parte mais difícil de lançar um negócio próprio fora do Brasil seria conseguir ter um projeto aprovado e conseguir os recursos para bancar isso. Em 2020, o desafio tem sido outro: quando é que termina esta série de lockdowns para que as pessoas possam começar a tentar a voltar a uma vida normal?” – questiona a potiguar que criou e produziu a Semana Cultural da Língua Portuguesa em Nantes por três anos consecutivos. Devido as restrições impostas pelo governo e isolamento social mandatório, o seu projeto cultural e gastronômico, o Casa de Amélia Nantes, vai começar apenas fazendo entregas.

No Reino Unido o governo demorou mais de um mês para divulgar a verba destinada ao suporte a artistas e empresários do setor cultural que, devido serem autônomos, não se encaixaram em nenhuma outra forma de auxílio. O montante, £1.57 Bilhão, não durou muito. 

Se viver de arte sempre foi notoriamente difícil, mesmo em países de primeiro mundo como a Inglaterra, a pandemia deste ano fez com que artistas repensassem prioridades, com o sindicato dos músicos do Reino Unido divulgando em setembro deste ano o resultado de uma pesquisa onde um terço dos músicos está considerando mudar de profissão. A realidade, nua e crua, é que artistas podem até ter conseguido mostrar os seus trabalhos virtualmente em palcos improvisados no meio da sala de casa, mas doações esporádicas não pagam o aluguel nem boletos chegando mensalmente.

E enquanto mais um dia se aproxima do fim, a população inglesa atordoada com um futuro incerto descobre que o Instagram também começou a enviar posts antigos para os seus usuários, sugerindo que eles compartilhem momentos do passado para que possamos sobreviver ao presente.
Ignoro, sem pestanejar. 

Como ignorei todas as correntes e desafios virtuais que me foram enviados este ano. 
10 fotos preto e branco de 10 dias em confinamento? Não, obrigado. 
Competição de coreografia no TikTok? Já passei da idade. 
Desafio da Dolly Parton com fotos diferentes que usamos no LinkedIn, Tinder e outras plataformas? Não despertou nem um pouco o meu interesse.

Quem não conseguiu dizer não para a sobrecarga de informação despejada nas nossas cabeças em 2020, sofreu consequências.

“Eu tive várias fases da pandemia. No começo queria saber de tudo que estava acontecendo, em tempo real. Assistia a todos os noticiários, lia tudo que encontrava online. E fui ficando nervosa porque, apesar de me sentir protegida e em segurança, as notícias do Brasil nas mídias sociais me deixaram inquieta. Mesmo quando prorrogaram a quarentena na cidade em que moro eu me não me abalei tanto. Mas as incertezas do Brasil tiraram a minha paz de espírito. Quando percebi que eu estava mudando, que estava ficando irritada facilmente com as pessoas online, eu parei de acessar mídias sociais. Dei um tempo de tudo porque a essa altura eu estava me arrastando para sair da cama. Para reencontrar o meu equilíbrio, busquei ajuda médica. Eu acredito que é preciso reagir e acreditar. E as coisas vão melhorar.” – sintetiza Adriana Silveira. 
Adriana está certa. É preciso acreditar. 

Dias melhores virão para cada um de nós que este ano adiou sonhos, abertura de negócios, viagens, casamento, mudança de trabalho ou país. Em algum momento vamos resgatar o que ficou na gaveta em um ano que não aconteceu.
E se bater a dúvida, como Jules Verne certa vez disse: 
“A chance que agora parece perdida pode se apresentar no último momento.”

*Márcio Delgado é jornalista e Coordenador de Marketing de Influência morando em Londres, Reino Unido
@marcio_delgado