Mário de Andrade e Câmara Cascudo: Amizade proporcionou imersão afetiva na cultura e vida social

Reportagens

Diário de viagem de Mário de Andrade terá edição potiguar em dezembro

“O Turista Aprendiz” ganhará edição fac-similar do Sebo Vermelho. Obra traz relatos de quase dois meses pelo RN entre 1928-29

25 de outubro de 2020

Cinthia Lopes

A famosa viagem etnográfica realizada pelo intelectual brasileiro Mário de Andrade (1893-1945) está registrada na obra “O Turista Aprendiz”. O relato em forma de diário de crônicas contém as impressões do autor de “Macunaíma” sobre os lugares visitados entre 1928 e 1929, numa viagem que percorreu o Brasil e enfatizou o Norte e Nordeste, incluindo no roteiro o Rio Grande do Norte, com objetivo de conhecer e estudar manifestações culturais populares de um Brasil distante da cultura cosmopolita.

Em 2015, a obra entrou oficialmente em domínio público após completados os 70 anos de morte do escritor paulista, liberando sua publicação. O IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico) lançou na época uma edição elaborada e comentada, acrescida também de ensaios e um CD — esse “Turista” pode ser acessado em pdf na internet.

Porém, existem poucas reedições físicas antigas de “O Turista Aprendiz”. E nenhuma edição potiguar, é claro. A primeira com toda certeza será do Sebo Vermelho, pois o editor Abimael Silva já confirmou o lançamento da versão fac-similar para dezembro de 2020. “Será um presente de natal das edições Sebo Vermelho”, contou.

Das únicas mudanças só a nova capa assinada por Alexandre Oliveira e o prefácio do jornalista Vicente Serejo. “O Turista tem 380 páginas e dessas 90 são dedicadas ao Rio Grande do Norte, as outras ao resto do Brasil", contabiliza Abimael. A reedição está mais que justificada.

A visita ao Rio Grande do Norte ganhou um registro generoso proporcionado pela amizade com o escritor e folclorista Luís da Câmara Cascudo. Aqui, o modernista experimentou uma estadia mais descontraída no cotidiano social e cultural. Entretanto, de início não gostou muito do que viu e decidiu explorar o interior. Mário mantinha uma relação de amizade com o crítico Antônio Bento e foi em sua fazenda Bom Jardim, em Goianinha, que Mário conheceu a arte genuína do cantador de cocos Chico Antônio. No total foram 40 dias entre Natal, visitas a Goianinha, Vila flor, Caicó e Jardim do Seridó. De volta a Natal, passou a apreciar lugares visitados na companhia de Cascudo.

Sobre Natal, na página 191 a carinhosa impressão de Mário de Andrade: “Natal, 7 de agosto de 1927: Manso o Potenji. Forte dos Reis Magos a bombordo. Estamos enfim no Rio Grande do Norte, propriedade do meu amigo Luís da Câmara Cascudo, quem será? São dezenas de barquinhos se aproximando do ‘Baependi’. Nisto vejo um rapaz gesticulando imensamente, exatíssimo no estilo das cartas do Cascudinho, era ele. E era mesmo. Em terra, apresentações, o simpático prefeito O’Grady, o secretário-geral de Estado. Autos. A praia maravilhosa de Areia Preta, Petrópolis, Refoles, Reservatório. Encontro o poeta Jorge Fernandes na casa dele, encorujado. Cerveja no restaurantinho. E o jantar na Escola Doméstica, Butantã de Natal. Sem discurso. Partimos já bem dentro da noite. Vida de bordo se preparando pra dormir.”

Depois de Natal, Goianinha foi a localidade onde ficou mais tempo. Mário de Andrade visitou e se hospedou por dez dias na Fazenda Bom Jardim. Visitou depois o Seridó e o Oeste. Jardim do Seridó ele comparou às cidadezinhas pintadas por Tarsila do Amaral. Lá quis conhecer o canto dos Negros do Rosário. Mas Goianinha marcou o cenário de um encontro que teve desdobramentos para além do livro, com a descoberta do coquista Chico Antônio. Seus cocos foram registrados em partituras na própria fazenda, em um piano trazido por Antônio Bento num carro de boi.

 “Que artista. A voz dele é quente e duma simpatia incomparável. A respiração é tão longa que mesmo depois da embolada inda Chico Antônio sustenta a nota final enquanto o coro entra no refrão. O que faz com o ritmo não se diz! Enquanto os três ganzás, único acompanhamento instrumental que aprecia, se movem interminavelmente no compasso unário, na "pancada do ganzá", Chico Antônio vai fraseando com uma força inventiva incomparável, tais sutilezas certas feitas que a notação erudita nem pense em grafar, se estrepa. E quando tomado pela exaltação musical, o que canta em pleno sonho, não se sabe mais se é música, se é esporte, se é heroísmo...”

Ainda em Bom Jardim, 11 de janeiro, Mário descreve o encantamento do embolador: “Passei hoje o dia com Chico Antônio, conversando, grafando algumas das melodias que ele canta. Agora ele está de novo giragirando no coco e vou dedicar mais esta crônica a ele. Principiou a cantar faz pouco e até onde o vento leva a toada, os homens do povo vem chegando, mulheres, vultos quietos na escureza, sentam no chão, se encostam nas colunas do alpendre e escutam sem cansar. A encantação do coqueiro é um fato e o prestígio na zona, imenso. Se cantar a noite inteira, noite inteira os trabalhadores ficam assim, circo de gente sentada, acocorada em torno de Chico Antônio uirapuru, sem poder partir.”

O VENTO É IRMÃO DO COQUEIRO

Depois de Chico Antônio, voltando a Natal: "Me deito depois desse primeiro dia de Natal. Estou que nem posso dormir de felicidade. Me entro na cama e o vento vem, bate em mim cantando feito coqueiro. Pois aqui chamam de 'coqueiro' o cantador de cocos. Não se trata de vegetal não, se trata do homem mais cantador desse mundo: nordestino. O vento de Natal é mano dele..."

COISINHAS NATALENSES

24 [de janeiro]. Apenas coisinhas natalenses. Boas conversas, boas comidas, palácio, tomar água de coco na Rôtisserie.

25 [de janeiro]. Almoço me oferecido por Cristóvam Dantas na casa dele. Panelada de carneiro estupenda. Recepção cordialíssima. Esteve o presidente Juvenal Lamartine, Antônio Bento, Cascudinho e o pai83 e a família Dantas. Fiquei derreado com a panelada e meio amolado com o terçol iniciado. À noite com Cascudinho e Antônio Bento passeio auto por Areia Preta ao luar e visita ao presidente veraneando aí.

26 [de janeiro]. Último dia de Natal. Terçol na mesma. Arranjo malas pela manhã. Despedidas a chefe de polícia, prefeito, presidente, Cristóvam Dantas, jornal A República, Adamastor Pinto, Damasceno Bezerra, Jorge Fernandes. Jantar me oferecido no Hotel Internacional por um grupo. Presidente faz-se representar. Depois casa do prefeito continua a farrinha.

VIAGENS DO TURISTA

Foram entre duas ou três viagens narradas em O Turista Aprendiz. De acordo com o livro do IPHAN, a primeira em companhia da aristocrata do café e mecenas dos modernistas Olívia Guedes Penteado, de sua sobrinha Margarida Guedes Penteado e de Dulce do Amaral Pinto, filha de Tarsila do Amaral, pintora do célebre Abaporu. “O périplo se inicia em maio de 1927 e dura três meses. Do Rio de Janeiro até a Bolívia e o Peru, navegando por toda a costa brasileira até Belém e depois por rios da região, entre eles, Amazonas, Negro, Solimões e Madeira. Na segunda viagem, Mário parte sozinho, em novembro de 1928, para o Nordeste, onde permanece até fevereiro do ano seguinte, para realizar seu projeto de pesquisa etnográfica. Sendo recepcionado por amigos como Ascenso Ferreira, Jorge de Lima, Cícero Dias e aqui Câmara Cascudo”, descreveu Luiz Philippe Peres Torelly.

O contato, ora com a floresta, ora com o sertão, e seus diversos tipos humanos e manifestações culturais, religiosidade, folguedos, danças, músicas, quase sempre impregnados de sincretismo e superstição, causa grande impacto em nosso “turista”, consolidando uma visão de nacionalidade abrangente em oposição aos valores regionais até então majoritários.