Quem cresceu vendo a "chuva branca", não entende a emoção de quem só a via no s cartões natalinos.

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Diários de Lockdown: Meias mágicas e chapéu de última hora

Quando a neve chega em Londres, os britânicos correm para perto da lareira e os brasileiros saem para as calçadas

22 de fevereiro de 2021

Marcio Delgado – Especial de Londres
#Brasileirospelomundo #BrasileirospelaEuropa #diariosdeLockdown 

Quando a neve chega em Londres, os britânicos correm para perto da lareira e os brasileiros saem para as calçadas. 
Não que os ingleses tenham medo do frio. 

Já vi gente nas ruas da cidade de bermuda e camiseta quando a temperatura está por volta dos cinco graus e eu de luvas e cachecól. Mas quem cresceu vendo chuva branca desde criança não sabe dar valor ao que eu só via em filmes ou em cartão de boas festas comprado nas promoções das bancas de jornais do calçadão da Avenida Rio Branco, em Natal.

Quando as barbearias de Londres fecham, em época de pandemia, os britânicos deixam o cabelo crescer. Os mais criativos cortam a franja, a maioria nem isso. Brasileiro arrisca um corte mais elaborado, as vezes inspirados por uma foto ou filme – o que nem sempre sai de acordo com o planejado porque confinamento não é ficção e tesoura não é brinquedo.

O bailarino José Alves, que está na capital inglesa desde 2013, sabe bem disso:
“Durante o lockdown no ano passado, como a barbearia estava fechada e eu já estava parecendo um homem das cavernas, decidi que seria uma boa idéia comprar uma máquina de cortar cabelo no site da Amazon e cortar o meu cabelo eu mesmo com a ajuda de um espelho. Obviamente a coisa não ocorreu como esperado. Poucas horas depois lá estava eu na internet, novamente, desta vez para comprar um chapéu para esconder o estrago e poder sair de casa para ir ao supermercado.” – relembra o profissional de dança, natural da Bahia, e que faz parte da Ballet Black, uma companhia de dança formada por bailarinos negros fundada no Reino Unido em 2001.


Há meses Alves não sobe aos palcos. Mas entre um lockdown e outro, conseguiu fazer viagens curtas para a Islândia e Croácia durante o verão, uma época do ano que só se usa chapéu na Europa para se proteger do sol – ou da língua alheia julgando cortes caseiros de cabelo. Porém é da rotina, e não do tempo quente, que José Alves sentiu mais falta durantes meses a fio de confinamento.

“O maior desafio para mim com certeza foi se manter em forma. Como bailarino você tem a obrigação de ter uma alimentação balanceada e fazer exercícios que vão de aulas de balé a exercícios de fortalecimento dos músculos. Mas com todas as restrições na Inglaterra, não é possível se movimentar tanto quanto eu gostaria e academias não abrem há meses. Sinto falta também dos exercícios feitos em dupla ou em grupo com os meus companheiros de trabalho porque esse gás que a dança nos dá também ajuda a manter a forma.” – revela o bailarino que foi o ganhador de um prêmio nacional de dança na categoria de melhor dançarino clássico masculino em 2018 e que ocupou a mente durante os longos períodos de confinamento fazendo um curso de massoterapia e artesanatos com materiais recicláveis.

Enquanto olho crianças fazendo barulho e brincando de jogar bola de neve nos carros, lembro que tenho que voltar para casa, jogar sal na calçada para derreter o gelo, domar a pilha de louça para lavar já ameaçando cair da pia, e começar uma investigação minuciosa para descobrir porque tenho tantos pares de meias com um pé só – e onde o outro teria ido parar. Desconfio que exista um planeta paralelo e, dentro da minha máquina de lavar, meias criativas encontraram um portal mágico para visitar outras galáxias, outros lugares ondem esteja nevando neste momento e ninguém nunca ouviu falar em lockdown. E volto à vida real, sem foto, porque esta parte da louça empilhada e meias órfãs, esta não postamos no Instagram. 

“E se eu disser que não tenho esse problema?” – indaga o bailarino quando eu falo para ele dos meus percalços diários que mantém a vida perto da normalidade de outrora. “Como eu gosto de passar e dobrar todas as minhas roupas, eu acabo fazendo par por par das meias enroladinhas. Não fica bagunçado, e certamente ocupa menos espaço. Aqui em casa, meias ficam confinadas organizadamente nas minhas gavetas, enquanto o resto do país fica confinado dentro de casa.” – ensina Alves.
E de peça em peça, entre meias, neve e chapéus, o lockdown inglês continua sem data prevista para o mundo voltar ao normal.

*Márcio Delgado é jornalista e Coordenador de Marketing de Influência morando em Londres, Reino Unido
@marcio_delgado