É que em tempos pandêmicos, entre uma esquina e outra, cada um ocupa as horas do dia como pode.

Colunas

Diários de Lockdown: Quando o vírus está na esquina da sua rua

Muitas esquinas distantes da minha rua mora o publicitário Silvino Ferreira Jr. Ele está na capital inglesa há 15 anos e e três lockdowns

24 de janeiro de 2021

Marcio Delgado – Especial de Londres
#Brasileirospelomundo #BrasileirospelaEuropa #diariosdeLockdown 

Moro em uma rua com 118 casas. Há muitos anos atrás eram 123, mas cinco delas, na parte de cima, foram vendidas e transformadas em um asilo.

No outro final da rua, na esquina de uma casa de muro baixo construída na década de 30 e que resiste ao tempo com reparos frequentes feitos por um casal de velhinhos, tem uma oficina de conserto de carros. 

Ao longo do tempo a oficina, que abriu em 1982 como loja de carros usados, virou depósito. Depois voltou a ser oficina. E no ano passado, durante a pandemia, tentaram mudar de ramo e transformar o ponto comercial em um lava-jato.

Como no Reino Unido os moradores das ruas adjacentes têm que ser consultados quando uma empresa quer fazer qualquer alteração que possa afetar o tráfego de pessoas ou veículos, o projeto foi embargado por tempo indeterminado. Inglês prefere ficar com o carro sujo do que ter que alterar a rotina. Então a oficina continuou oficina.

Passo na frente do prédio todos os dias cedinho quando caminho com o meu cachorro. Vejo os funcionários chegando aos poucos, dando bom dias curtos de quem tomou chá às pressas para sair de casa no frio de janeiro. Mesmo depois que passo, ainda consigo ouvir a conversa matinal deles ecoando na rua vazia. 

Esta semana levei um susto porque, pela primeira vez em anos, a oficina estava fechada. Um anúncio no portão, plastificado para resistir ao tempo, pedia desculpas aos clientes por ter que suspender o atendimento por 14 dias devido a um dos mecânicos ter sido diagnosticado com Covid-19. E de repente, todas aquelas estatísticas preocupantes que assisto diariamente na TV parecem ainda mais alarmantes: o coronavírus está na esquina, de botuca, logo ali.

Muitas esquinas distantes da minha rua, em outra parte de Londres, mora o publicitário Silvino Ferreira Jr. Ele está na capital inglesa há 15 anos e três lockdowns e, assim como eu, tem se perguntando se todo esse confinamento de 2020 adiantou de alguma coisa:

“Gera uma frustração muito grande. É como se você estivesse se recuperando de uma doença e tivesse uma recaída. E uma certa raiva, porque muito do que está acontecendo agora se deve ao fato de que muita gente, que tem condições de se isolar, não respeita as regras. A grande falta de respeito é, principalmente, em relação aos profissionais de saúde. E aí temos isso: quem se sacrificou, vê que o sacrifício foi em vão.” – compara o baiano que produz vídeos mostrando destinos turísticos de cidades e lugares na Europa e que em 2009 lançou o Canal Londres, uma TV online cujo foco são os brasileiros vivendo na cidade de 10 milhões de habitantes. 

Polivalente, Silvino lançou um livro de poesias, Virtual (Grosvenor House Publishing) em fevereiro de 2020 – com eventos de divulgação no Brasil sendo todos cancelados quando o mundo parou.

Ele também produziu uma série online intitulada ‘Um Dia de Cada Vez’, mostrando o cotidiano de quatro famílias em tempos de pandemia: uma em Londres, duas no Recife e uma em Londrina/PR. A intensidade com que se jogou no projeto resultaria em 75 vídeos e problemas nos dois pulsos após escrever e editar por mais de 70 dias consecutivos durante a pandemia.

Para ajudar com as contas, o brasileiro gerencia websites para clientes. Mas é a forma prática com que decidiu gerenciar o seu próprio relacionamento com a esposa, a diretora de pós-produção Susan Ferreira, que é algo inusitado para quem trabalha e é movido a ideias.

“Logo que começou o confinamento, no ano passado, eu e a Susan conversamos sobre o desafio que seria para o casamento. Vivemos em um típico apartamento da era vitoriana, com poucos cômodos. Então traçamos um plano para que cada um tivesse espaços de privacidade durante algumas horas do dia. Acho que provamos que somos excelentes companheiros.” – comemora Silvino.

“Sempre gostei de ler e escrever e as duas atividades têm ocupado muito do meu tempo. 2020 teve uma produção literária muito boa. Decidi ler mais livros escritos por mulheres e, em especial, por mulheres negras. Além de poesia, estou escrevendo um romance. E como o Canal Londres completou 10 anos, parei para repensar o projeto e planejar os próximos passos. E estou estudando mandarim. Nada sério, só um passatempo. Algo bacana que descobri foi que havia muita coisa à minha volta que eu não prestava atenção e o lockdown me deu a oportunidade de conhecer melhor o bairro onde eu moro.”

Eu não escrevi romance e não sei uma palavra sequer em mandarim. Mas tenho conhecido melhor o lugar onde moro, caminhado mais e lido até anúncio em porta de oficina fechada. 

É que em tempos pandêmicos, entre uma esquina e outra, cada um ocupa as horas do dia como pode.


Márcio Delgado é jornalista e Coordenador de Marketing de Influência morando em Londres, Reino Unido
@marcio_delgado