O tempo marcado pela memória

Colunas

Duas horas de relógio

Um percurso afetivo das lembranças de infância, distante dos ponteiros ou números digitais

19 de junho de 2024

Ítalo de Melo Ramalho

As festas juninas estão sendo vividas, e os arraiais se multiplicam pela cidade. O que permanece único é o corpo. Um só para cumprir todas os convites. E haja matéria orgânica para tal. Goró aqui, goró acolá. Muito encontro social. Já me sinto como se estivesse no principado monacesco. Com príncipes, princesas, reis, rainhas e o alegórico bobo da corte que também é o poeta da noite.

Dia desses, saí de casa em direção à feira para comprar 12 espigas de milho verde, pois participaríamos de um pequeno arraial e não queríamos chegar com as mãos abanando. Pensei em fazer uma canjica ou, quem sabe, simplesmente cozinhar o milho. Para o meu desgosto, a feirinha popular da Atalaia, espaço em que tanto gosto de gastar as minhas raras pecúnias, não dispunha do produto com a qualidade que procurava. Das 100 bancas ali expostas, o milho, pela escassez, foi elevado à categoria de artigo de luxo. Pronto. Fiquei atônito. Logo aqui em Sergipe, lugar no qual o milho dá na canela! A festa era às 19 horas e o ponteiro já ultrapassava as 13. Para quem não sabe, o milho na panela de pressão demandaria uns 30 minutos. Mas, na panela de teto, sem pressão, ultrapassaria uma, duas ou, quiçá, duas horas e meia.

A onça bebia água, e a minha piscina já andava por demais seca. O tempo fluía na sua marcha sem volta. Numa carreira só, fui da falta à procura. Pensem num pulo para encontrar o meu até então artigo de luxo! Por sorte, depois de alguma luta, encontrei. E encontrei muito. No mercado público do Augusto Franco, bairro de Aju, o que não faltava eram coisas relacionadas aos festejos juninos. Das tradicionais fogueiras aos fogos de artifício; das comidas à base da culinária popular às vestimentas quadriculadas. Tudo muito bem organizado. O meu desespero inicial foi tomando ares de sossego. E assim se firmava. Ufa!

Entre outras negociatas com a vendedora, escuto uma voz atravessando a nossa conversa e, ao arrepio do nosso consentimento, desfere uma pergunta inocente sobre a distância entre um e outro ponto da cidade. Claro, o questionamento não poderia derivar outras dúvidas se não fosse cercado da simples expressão: Juliana, isso dá mais do que duas horas de relógio? Fiquei encantado com aquela expressão: duas horas de relógio!

Formulei um tempo que não estivesse atrelado aos ponteiros nem aos números digitais dos smartphones, e viajei. Viajei longamente. Fiz um percurso afetivo das minhas lembranças da infância em Guarabira à juventude em Ceará-Mirim: cidades em que morei por longos períodos até a adultice em Natal, RN, e a proximidade da melhor idade aqui em Aracaju. Milhos que comi; forrós que dancei; bombas e traques que soltei. Nesse trajeto contam-se mais de 50 anos; e 50 anos não são 50 dias, minutos e tampouco segundos. Imitando a pose reflexiva dos filósofos, sentei no tamborete da banca de Juliana e pedi uma cerveja. Tomei uma, duas e, mesmo naquele burburinho, o tempo por onde passeava em nada parecia com o que vivia. E prossegui.

Até que, Dudu, irmão de Juliana, que àquela altura já eram os meus melhores amigo e amiga, deu um leve tapa no meu ombro e disse: seu Ítalo, seu Ítalo! Acorde homi. Já são 17 horas e o senhor falou que a sua festa será às 19. O senhor só dispõe de duas horas para cozinhar o milho, já que não vai fazer na pressão! E precisa tomar banho e se pentear. Venha, pague a sua conta e pegue o beco pra casa. Pensei: Eita, fio do cabrunco! O meu amigo estava certo. Eu só tinha o exíguo tempo de duas horas de relógio para preparar o rango. Porém, dispus de outras duas horas − fora do relógio − para sonhar distante da fatalidade.