Reencontro com o passado em histórias vividas no quintal de casa

Colunas

ECOS DO PASSADO

Recordações dos ritos antigos da vida doméstica, como matar galinhas na cozinha e tratá-las para a refeição da família

02 de fevereiro de 2023

Clotilde Tavares

Ando escrevendo minhas recordações, num processo longo, lento e muitas vezes interrompido pelas urgências do presente. O principal objetivo disso é me distrair, uma vez que não tenho muita intenção de editar um livro – coisa trabalhosa e cara, que já fiz muitas vezes, mas não sei se tenho mais paciência para fazer de novo. A ideia é colocar o conteúdo escrito à disposição na Internet, para quem quiser ler.
Vez por outra me lembro de algo que considero curioso o suficiente para interessar os meus eventuais leitores, como hoje, quando trago ecos de um passado remoto, no qual eu era tão pequena que tinha que ficar de joelhos em cima de uma cadeira para acompanhar o que se passava em cima da mesa da cozinha, como verão a seguir.

O período é os anos entre 1950 e 1952, quando morávamos em Campina Grande, na rua Alexandrino Cavalcanti. A família era composta por meus pais, minha tia – um pouco mais velha do que Mamãe – que morava conosco, eu e meu irmão nascido em 1950. Eu devia ter uns quatro anos de idade nessa época, uma vez que nasci em dezembro de 1947.

Uma coisa de que bem me lembro nesses dias eram as manhãs cheias de sol, que dava na parte de trás da casa. Mamãe com os cabelos soltos nas costas colocando milho para as galinhas e a atenção com que a ave olhava o grão com um olho, depois com o outro e só então bicava certeira o caroço de milho e o engolia. Quando as galinhas engordavam, cabia a Titia dar a elas o seu triste destino, pois Mamãe dizia que não tinha coragem. O curioso é que hoje compramos o frango todo partido, limpo e embalado, sem sangue nem miúdos, ou já assado no supermercado, ou ainda somente o pedaço que a gente quer – o meu preferido é a sobrecoxa. E sequer imaginamos como era que se preparava uma galinha há setenta anos.

As cenas são fortes, sangrentas e terríveis, principalmente se você, pessoa antenada e evoluída do século XXI, é vegana, vegetariana, ou tem ligação forte com os animais. Essa é a hora da leitura que você tira seus sensíveis olhos do texto e vai fazer outra coisa. Depois não diga que eu não avisei. Mas lhe digo também que na década de 1950 essas cenas se passavam com toda a naturalidade em qualquer cozinha doméstica deste país, que as pessoas tinham por hábito manter um pequeno galinheiro de engorda nos fundos da casa e que as aves eram preparadas do jeito que você vai ver (ou não vai ver) a seguir.  

O ritual era minucioso e eu o acompanhava de perto. Um caldeirão de água era colocado para ferver e a matança só se iniciava quando a água começava a borbulhar, o que às vezes demorava um pouco, no lento fogão de carvão. A faca maior, a peixeira, era amolada no batente de cimento da cozinha. Iam então ao quintal cercar a galinha ou o frango escolhido; a ave era deitada de lado no chão da cozinha e Titia, de cócoras, pisava com um dos pés nas asas e com o outro nos pés do animal. Assim presa, parava de se mexer. Titia arrancava com a mão as peninhas delicadas do pescoço da galinha, expondo a pele, onde passava a faca, interrompendo com a lâmina o jorro da artéria recém-secionada para que não sujasse a cozinha e vertesse somente sobre um prato colocado no chão, com um pouco de vinagre e um garfo.

Quando o sangue parava de fluir, ela saía então de cima da galinha, colocando discretamente debaixo de uma das asas a cabeça do bicho sacrificado, presa agora ao pescoço apenas pela pele. Aí ia “bater” o sangue com o garfo, misturando-o ao vinagre para que não coagulasse, e aquela mistura iria servir de base para a cabidela, que era como chamávamos o “molho pardo”. Terminando de “bater” o sangue, Titia pegava a ave pelos pés e ia devagarinho mergulhando o corpo do bicho na panela de água fervente, para amolecer a pele, facilitando o arrancamento das penas. Essa operação produzia um odor esquisito, de pena queimada e cocô de galinha, que nunca esqueci.

A segunda fase era “tratar” da galinha, ou abri-la. Mamãe colocava uma cadeira encostada à mesa, onde eu ficava de joelhos, prestando atenção à operação, que me deixava fascinada. A galinha era aberta pela frente, pela titela (o peito), depois de ter a cabeça e os pés cortados. Os miúdos eram retirados, e eu via os grãos de milho ainda dentro do papo; a moela, onde os grãos eram triturados e – como Mamãe explicava – cheia de pedrinhas que a galinha engolia para ajudar no amassamento do milho engolido; o fígado e a “passarinha”, ou baço, o coração com suas artérias, o “bofe”, ou pulmões e as tripas, que eram lavadas, viradas com o auxílio de um graveto, lavadas de novo e assadas sobre a grelha no fogão depois de alguns minutos mergulhadas em suco de limão para diminuir o odor você sabe de quê.

Tudo aquilo exercia sobre mim uma grande fascinação. A galinha era partida pelas juntas, ou articulações, mas tudo ia junto para a panela. Só se colocava no lixo o papo, o bofe e uma parte da cabeça. Cada uma das pessoas da casa tinha seu pedaço preferido e eu me lembro que sempre gostei das asas e da moela, e Titia adorava os pés. Mamãe escolhia o sobre-cu, e o pescoço. A papai sempre eram destinadas as coxas e a titela, mas isso era comum naquele tempo: ao chefe da casa, os melhores pedaços de carne sempre eram reservados e embora à noite nós só comêssemos cuscuz com leite e café, para Papai sempre se reservava um pedaço de carne que ele comia com arroz ou macarrão. Ele não comia comida do sertão; e se não houvesse arroz, macarrão ou carne, ele comia somente pão com café e talvez um ovo, com a gema bem mole, onde ele ia umedecendo os pedacinhos de pão, só da casca, pois ele detestava o miolo, que tirava todinho e empilhava ao lado do prato.

Há outro episódio ligado à mortandade de aves que era praticada na cozinha lá de casa umas duas vezes por semana, e eu vou aproveitar sua paciência para lhe contar aqui, já que estamos no assunto. 
Num sábado à noite, as mulheres - no caso Mamãe, Titia e uma das agregadas do interior que sempre estavam lá por casa – inventaram de matar um galo para se comer no almoço do domingo. Para amaciar a carne da ave, resolveram fazê-la engolir algumas doses de cachaça. A cada dose que introduziam goela abaixo do galo, cada uma delas tomava duas ou três, e o resultado é que ficaram bêbadas demais e não mataram o bicho direito, que ficou meio degolado, caminhando, batendo as asas e espadanando sangue nas paredes da cozinha. Enquanto nós, crianças, gritávamos aterrorizadas, as mulheres, completamente embriagadas, riam-se até caírem sentadas no chão, em meio a cocô de ave, penas e facas ensanguentadas. 
Pode-se pensar numa história mais louca do que essa? Eu não.



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