Para o autor, escritores periféricos só ganham prêmios quando seus livros são extraordinários

Reportagens

Eleazar Venâncio Carrias: "Todo e qualquer tema cabe na poesia"

Autor paraense foi semifinalista do Prêmio Oceanos 2022 com o livro "Máquina", além de finalista do 4o Prêmio Mix Literário

31 de janeiro de 2024

Cefas Carvalho 

Nascido em 1977, no município de Tucuruí, no Pará. Publicou livros elogiados e premiados como "Máquina" (Urutau, 2021) e "Quatro gavetas" (Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves, 2009), vencedor do 1o Prêmio Dalcídio Jurandir de Literatura. Com Máquina, foi semifinalista do Prêmio Oceanos 2022 e finalista do 4o Prêmio Mix Literário. Publicou poemas em diversas revistas literárias online. Está em processo de lancamento de novo livro de poesias "Regras de fuga". Confira:


Você já publicou os livros de poesia "Regras de fuga" (2017, 2023), "Quatro gavetas" (2009) e mais recentemente o elogiado "Máquina". Acredita que existe uma linha ou conceito que une seus livros? Qual a avaliação que faz de sua obra poética publicada?

Nunca pensei sobre isso. No prefácio do meu primeiro livro, Benedito Nunes cita “as contradições que a existência humana pronuncia” e destaca “a tensão entre ausência e presença” como características daquela poesia em formação. “Regras de fuga”, o segundo, é resultado de uma experiência performática vivida ao longo de dois anos. O poeta personagem escreve sobre o que considera ser uma condição do homem contemporâneo: um ser permanentemente em fuga de si mesmo. Fuga duplamente impossível, porque, desde já, configura também um retorno, mas um retorno sem objeto. Imerso nessa condição absurda, o poeta personagem não deixa, porém, de entrever os momentos de beleza que, raros mas insistentes, contaminam o caos da vida mundana. Trata-se também da fuga como resistência – como bem observou o poeta Paulo Vieira, autor do prefácio da edição impressa, que acaba de sair pela Urutau. 
O “Máquina” é mais complicado, porque ele é múltiplo e singular ao mesmo tempo, com vários conceitos e referências que se congregam formando um bloco estético-político. É um manifesto, uma denúncia, mas também um mea-culpa diante dos absurdos que vivenciamos nos últimos anos, em decorrência das políticas praticadas no Brasil. Entre si, meus livros são bem diferentes. Por enquanto, não consigo ver uma linha que os uma. Talvez haja, não sei. E demoro muito para concluir um livro. Às vezes passo seis meses ou mais sem escrever um único verso. Mas avalio que melhorei nos últimos anos, em termos de forma e expressão. Acho que estou um pouco mais maduro.


Como pedagogo e pesquisador de linguagens, como vê a formação de leitores atualmente? E como avalia que o sistema educacional pode incentivar a leitura de literatura/poesia?

Trabalho na educação pública há mais de 25 anos e nunca vi uma política efetiva e eficiente de formação de leitores, particularmente leitores de literatura. Na região onde moro, sudeste do Pará, com o passar dos anos a situação só piorou, e desconfio que no resto do Brasil não é diferente. As duas cidades onde vivi tinham, cada, apenas uma biblioteca pública com um acervo de livros velhos e edições defasadas. Mas essas bibliotecas foram simplesmente extintas, e não se sabe que fim levaram seus acervos. A única livraria comercial – fechada. A única banca de jornal – fechada. 
Penso que ensaiar uma solução para tamanha tragédia passaria por empreender uma política ampla que envolvesse tanto o setor privado quanto o setor público. Que incentivos tem um empreendedor para manter uma pequena livraria numa cidade de vinte mil habitantes? Uma política de formação de leitores que vise apenas à escola certamente fracassará. Não é o caso, porém, de dizermos que no Brasil não existe uma cultura do livro e da leitura. Ela existe. Mas é uma cultura do livro como objeto de luxo, da leitura como instrumento, da literatura como arte destinada às elites. A literatura como direito defendida por Antonio Candido nunca existiu entre nós. 
Contraditoriamente, hoje no Brasil se formam mais leitores do que nunca, não necessariamente leitores de literatura. Comparando com o cenário de vinte anos atrás, é óbvio que o mercado livreiro cresceu. Novas editoras pipocam por toda parte, novos eventos e feiras literárias atraem multidões. Quem move tudo isso? A leitora, o leitor. E quem está formando a leitora, o leitor? É ainda a escola e as professoras, aos trancos e barrancos. Mas agora com a ajuda da internet e das redes sociais. Veja, por exemplo, os perfis no Instagram que só publicam poesia e tem 200 mil, 300 mil seguidores, a maioria destes gente jovem. Sem esquecer os clubes de leitura, a exemplo do Clube de Leitura Leia Norte e Nordeste, que faz um trabalho lindo de formação de leitores e de divulgação e valorização da nossa diversidade literária.


Como vê o papel das redes sociais para quem produz literatura? Ajuda ou atrapalha?

Ajuda e atrapalha. Falo como escritor periférico que ainda luta por ocupar espaços relevantes. Se você pensar na produção em si, isto é, na escrita, o melhor a fazer é abandonar as redes sociais. Mas se você entender a produção de literatura como um processo complexo cujos tentáculos alcançam desde o teclado do seu notebook até a mesa de trabalho do secretário de cultura que assina editais, então você terá de admitir que as redes sociais são úteis. Elas ajudam o escritor “anônimo” a se manter atualizado sobre as oportunidades do momento e a ganhar leitores. 
Eu uso as redes para divulgar meu trabalho, receber retorno dos leitores sobre minha poesia, manter intercâmbio com outros escritores e escritoras, conhecer editores, especialmente editores de revistas – atenção, jovens, publiquem em sites e revistas online antes de publicarem em livro –, além, claro, de tentar construir uma imagem do poeta personagem que inventei e tento interpretar. Mas, voltando, se você quer escrever, o ideal é desativar suas redes sociais durante o período da escrita. As redes sociais são muito barulhentas. Escrever exige silêncio. Na maior parte das vezes, escrever exige silêncio. 


"Máquina" foi semifinalista do Prêmio Oceanos em 2022 e também finalista do Mix Literário. Qual sua opinião sobre premiações literárias?

Dizer que os prêmios literários não importam é bobagem. Se não importassem não haveria tanta discussão em torno deles. A publicação do meu primeiro livro, o “Quatro gavetas”, resultou de eu ter vencido o prêmio Dalcídio Jurandir da Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves na categoria poesia, em 2008. Foram mil exemplares impressos. Praticamente não houve distribuição, eu não sabia o que fazer com os seiscentos exemplares que ficaram comigo. Mas graças ao prêmio, o livro nasceu e chegou a alguns leitores que permanecem fiéis até hoje. E é claro que, na sociedade em que vivemos, um prêmio dá maior credibilidade ao livro e pode abrir algumas portas, embora não seja garantia de mais vendas ou maior adesão de leitores. Enfim, os prêmios são importantes, mas não devem guiar a escrita de ninguém. Até porque, nem sempre eles são justos. Mas nós também queremos e devemos ocupar esses espaços de representatividade simbólica, por assim dizer. 
Outro dia, eu e a Adelaide Ivánova conversávamos sobre essa questão dos prêmios como instâncias de legitimação. Faço questão de reproduzir parte da fala dela, porque ela diz coisas muito importantes, com as quais eu me identifico totalmente: “Para escritores periféricos, subalternizados, ganharem prêmios, seus livros têm de ser excelentes, extraordinários. A gente nunca ganharia prêmio por um livro medíocre. Quando a gente ganha, tem que ser extraordinário. A gente escreve muitos livros extraordinários que também não ganham prêmios, por quesitos que são extra literatura, quesitos sociais.” E mais: “Essas instâncias de legitimação são responsáveis pela criação de ressentimentos”, e seus agentes “sabem disso, só que, quando a gente reage, aí a gente é ainda mais excluído. A pouca chance que a gente tinha de entrar nessas instâncias de legitimação se perde de uma vez, porque a gente é reduzido ao ressentimento. É como se a gente fosse punido por sentir os sentimentos que essas instâncias de legitimação, essas premiações injustas geram. É como se a crítica que a gente fizesse fosse irracional, que é geralmente o que se faz com os subalternizados: você é emocional demais, dizem às mulheres; você é irracional demais, dizem às pessoas não brancas quando elas reagem; você tá sendo agressivo nas suas colocações”. 
E então a Adelaide coloca uma coisa fantástica. É preciso “abraçar o ressentimento e dizer: sim, eu estou ressentida, mas o meu ressentimento é um ressentimento que vem de uma percepção muito material, de ver que as premiações não são somente pelo mérito literário. Acho que a gente precisa abraçar esse ressentimento como uma fonte de sabedoria e ver que esse ressentimento tá me informando algo. Antes que nossos opositores venham dizer que nós só estamos fazendo determinada crítica aos prêmios porque estamos com inveja, nós precisamos admitir que esse ressentimento fala sobre uma estrutura que há séculos comete injustiça contra escritoras e escritores periféricos”.  


Sua poesia é considerada forte e de temas densos, como homo afetividade e sexualidade, chegando a abordar temas delicados como a pedofilia. Como escolhe sua temática poética e qual a importância de enfocar esses assuntos?

Não é uma escolha consciente. No meu caso, trata-se mais de ser afetado. Esses temas atravessam minha poesia porque antes atravessaram ou atravessam minha vida. Simples assim. Nunca escolhi previamente determinado assunto e me pus a escrever sobre ele. Mas, mesmo não sendo uma escolha consciente, escrever atravessado por essas questões densas e delicadas, aproveitando suas palavras, torna-se um ato político importante. 
E agora eu me lembro de Foucault. Quando eu, que vivi uma experiência de abuso sexual na infância, faço um poema sobre pedofilia, eu exercito uma coragem da verdade muito particular: a coragem da verdade na poesia, um gênero ainda visto pela maioria das pessoas como o terreno exclusivo do belo e do não violento. Mas todo e qualquer tema cabe na poesia. E se o poeta fala da sua própria experiência, o conteúdo da sua escrita ganha muito mais relevância política, porque isso opera uma partilha do vivido, ou, se quisermos citar Jacques Rancière, uma partilha do sensível, que vai do particular ao coletivo e favorece a identificação do leitor nesses dois planos, o psíquico e o social, de forma não dicotômica. Assim, fica mais fácil entender que toda experiência íntima, por mais pessoal que seja, é uma experiência política, ela se dá no seio de uma coletividade. Assim como o público e o coletivo podem, inversamente, ser vividos e registrados como experiência individual, sem por isso perder sua força política.


Percebe-se muitos poemas seus com o tema da partida. Em um deles, "Partir", você diz: "Desatar os velhos sapatos/repor os óculos/engolir em seco e partir”. Em "Fuga", você escreve: "E se resta alguma estima/acima de tudo, promete: não voltarás/Vai. É um risco cada esquina/mas, corre as ruas como se fossem iguais". Acredita que o poeta tem temas que, como diria Vargas Llosa, seus demônios o forçam a escrever?

No meu caso não há como negar que o poeta, animal humano, e o eu lírico, essa ideia antiga, estão irremediavelmente implicados. Nunca li o Vargas Llosa, mas essa metáfora dos demônios me parece boa. Toda a minha poesia nasce da minha experiência. O desejo de partir sempre me perseguiu, às vezes como imagem de uma libertação, às vezes como pulsão de morte mesmo. Viver cansa. A vida é muito bonita, mas extremamente cansativa. E o modo de vida capitalista só piora as condições da nossa existência. 
Na adolescência e até o fim da juventude, o ponto alto dessa pulsão era uma espécie de tédio. Depois dos 40, conforme a imagem da fuga como libertação vai se tornando mais difusa e vai se impondo a certeza de que a morte não resolve nada, o que resta é um buraco que não comporta nenhum signo, nenhum significado. E isso, se não for devidamente encarado, pode ser mais perigoso que a morte. Cheguei num ponto em que preciso, como diz Leonardo Boff, domesticar meus demônios, não os expulsar. A certa altura, a gente compreende que as pulsões de morte são uma força vital. O tema da partida então se expande e se aprofunda. Mais do que desejo de liberdade ou de finitude, partir é movimenta-se: ir e voltar, morrer e renascer o tempo todo, mesmo no buraco vazio. Revoltar-se. Fazer tremer as paredes do buraco. Aí nossos demônios não nos forçam a escrever, tornam-se parceiros da escrita.


Avalia que atualmente existe intercâmbio literário entre as regiões do país? Quem mora do Sul-Sudeste lê o que se escreve no Norte-Nordeste?

A internet – ela de novo – facilitou muito o intercâmbio entre as diversas regiões brasileiras. Mas a distribuição de livros impressos para escritores do Norte continua um problema. Infelizmente ainda parece natural que uma livraria, na sua loja física ou no site, só exiba autores do Sul e Sudeste e estrangeiros entre os livros em destaque, com raríssimas exceções (impossível não citar Itamar Vieira Júnior). 
Como disse, parece natural, mas não é. Pelo contrário, é um sintoma da estrutura perversa e colonizadora que sustenta a mentalidade livreira do mercado. Nos últimos anos, vimos surgir novos excelentes escritores e escritoras no Norte e no Nordeste, vários com prêmios importantes. Para citar alguns nomes do meu Estado: Luciana Brandão Carreira, Daniel da Rocha Leite, Paulo Vieira, Amarílis Tupiassu, Ney Ferraz Paiva, Fernando Maroja, Marcos Samuel Costa... Por que eles não aparecem nos cadernos especializados dos jornais do Rio e de São Paulo? Por que não somos convidados para a programação principal das grandes festas literárias e bienais? A resposta imediata é que os curadores desses eventos simplesmente não nos leem. 
Claro que há outros aspectos implicados, linhas de força estruturais e históricas. Desde a infância os escritores do Norte e do Nordeste são obrigados a ler os do Sul e Sudeste, por imposição dos currículos escolares e do vestibular. Eu nunca vivi fora do Pará, então não sei dizer com propriedade se atualmente o eixo Sul-Sudeste está lendo mais as literaturas do Norte-Nordeste. A julgar por resenhas, listas de mais vendidos, ementas de disciplinas acadêmicas, escolhas de curadores etc., parece que a situação não mudou muito. Por outro lado, no plano interpessoal vejo vários escritores de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte se interessando por autoras e autores do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, trocando livros entre si, e até recomendando escritores e poetas de fora do “eixo”. Alguns vão além e realizam uma verdadeira leitura-pesquisa de nossos conterrâneos. É o caso, por exemplo, do Alberto Pucheu e seu lindo encontro com as obras de Vicente Franz Cecim, Eliane Potiguara, e Moisés Alves.


Quais os seus próximos projetos literários?

Nenhum projeto. Meus poemas nascem de tremores esparsos. Eles brotam entre fendas no tempo, brechas no território vivido, e os livros vão se compondo por extratos. É uma atividade geológica.