Biblioteca Rubem Fonseca / José Correia Torres Neto

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Este é um breve comentário sobre um conto de Rubem Fonseca

Rubem Fonseca deixou, em Feliz ano novo, o que se espera de um contista de sua categoria: o estado da arte da crueldade do humano.

28 de julho de 2020

José Correia Torres Neto | Mestre em Engenharia Mecânica e Editor de Publicações

Talvez autobiográfico, mas com certeza irônico, o conto Intestino grosso, de Rubem Fonseca, fecha o livro Feliz ano novo. Esse livro, que estreou em 1975, é considerado como o mais polêmico do mineiro de Juiz de Fora. Feliz ano novo foi censurado pela ditadura, após a sua publicação, por apresentar “matéria contrária à moral e aos bons costumes” e por fazer apologia à violência.

Intestino grosso é um conto que apresenta uma entrevista remunerada de um escritor a um repórter de uma determinada revista e que, ao longo da conversa, mostra seus pontos de vista sobre seus livros e sobre a literatura mundial. Em meio a uma boçalidade repugnante, o escritor entrevistado inicia a conversa falando dos quase cinco mil livros de sua biblioteca, de ler, no mínimo, um livro por dia, da sua capacidade de ler cem páginas por hora e ainda reforçar que seu desempenho já tinha sido bem maior. Do conto, nada mais será dito, mas será comparada a atitude, talvez fictícia, do personagem principal com as atitudes de alguns escritores, certamente fictícios.

O intestino grosso constitui a parte final do aparelho digestório, possui uma rica flora bacteriana e também é responsável pela absorção da água e pela consistência do bolo fecal. O leitor, ao longo do conto, vai fazer várias analogias da descrição do elemento anatômico com a fala e a personalidade do escritor entrevistado.

Se pudéssemos exercitar e pensar em um escritor antagônico ao que foi entrevistado em Intestino grosso, teríamos um elemento burlesco, apavonado, onanista, dependurado em seus adjetivos e seria talvez menos ficcional do que o escritor criado por Fonseca. Esse antagônico seria um daqueles que se escondem em uma ou outra figura de linguagem, ou daqueles que não conseguiram se encontrar entre os seis pronomes pessoais.

Rubem Fonseca deixou, em Feliz ano novo, o que se espera de um contista de sua categoria: o estado da arte da crueldade do humano. Ele soube subverter aquele arquétipo escritor que balbucia meia dúzia de palavras sem muita primazia para um cachorro louco desafiador de naturalidades.

Em Intestino grosso, o escritor desnuda o pornográfico e a pornografia, a filosofia e o filosófico, o natural e o pudico, deixando o leitor entrelaçado entre a verdade e a não verdade naquilo que pensa um escritor famoso e, ao se chegar ao fim da última página, implora, esse leitor, por mais outro tanto.

Nota: este texto foi finalizado um dia antes da Revista Piauí, nº 166, chegar às minhas mãos e, coincidentemente, com o excelente artigo "Feliz ano velho: o alvoroço provocado por um livro de Rubem Fonseca na burocracia da censura nos anos 1970", do jornalista João Pedro Soares. Em três páginas da revista, João Pedro Soares apresenta detalhes sobre a tramitação do processo de censura do livro de Rubem Fonseca durante a ditadura, além de um trecho da fala do autor sobre o seu trabalho no Instituto de Pesquisa e Estudos Social (Ipês). Vale a pena conferir o impecável artigo.

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/feliz-ano-velho-rubem-fonseca/