A perda da memória não é exclusivamente uma consequência natural da idade

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ESTRATÉGIAS DA MEMÓRIA

Sabe aquele momento de profunda introspecção diante do caixa eletrônico, tentando se lembrar da senha?

05 de maio de 2022

Clotilde Tavares

Memória, ou vaga lembrança? Você já está naquela fase em que tenta mudar o canal de TV com o controle do ar-condicionado? Ou passa horas procurando os óculos que estão na testa?

Esses esquecimentos têm produzido piadas de todo tipos em quem sofre com eles mas, brincadeiras à parte, não há nada pior do que viver esquecendo das coisas, deixar as panelas fervendo no fogão, as plantas esturricadas por falta de água, ou não saber onde colocou os óculos. E o mais desagradável é que quando isso acontece a uma pessoa jovem, é porque está estressada; na minha idade, dizem logo que é caduquice…

A perda da memória não é exclusivamente uma consequência natural da idade, apesar de sabermos que, como todos os órgãos do corpo, o cérebro se deteriora ao longo dos anos e muitas das suas funções ficam prejudicadas. Também o estresse ou o uso de álcool e drogas podem lesar a capacidade de armazenar informações e resgatá-las depois, quando isso é preciso.

Algo que muita gente não atenta, no caso da memória, é que não se trata somente de armazenar informações. É preciso ter a capacidade de resgatá-las depois, é preciso tê-las disponíveis quando você precisa delas. Eu comparo com uma pessoa que vai lendo livros, jornais e revistas, e armazenando cópias de artigos, trechos, textos e outros, mas tudo misturado, sem organização. No dia em que precisar de um texto tal, como irá encontrar?

Algumas coisas podem ajudar a quem vive se esquecendo das coisas. Uma das mais importantes é ter um lugar certo para cada coisa. Por exemplo: meus remédios estão organizados assim: os de tomar de manhã, na mesinha da cozinha em que preparo o café. Os de tomar à noite na mesinha ao lado do sofá onde vejo TV. Não tem como esquecer. Quando estou tomando antibiótico, que tem que ser na hora certa, programo as doses com o alarme do celular e fico pasma como muita gente, que vive agarrada com o aparelho, não faz dele uso para este fim, e nem sabe como fazer a programação.

As tesouras são três: uma na cozinha, outra na mesa em que trabalho e escrevo e a terceira junto com o material de costura. A coisa que eu mais odiava quando morava com a família – agora moro sozinha – era ficar procurando a tesoura, e não adiantava comprar dez tesouras; quando eu queria uma, nunca encontrava. Uma vez amarrei uma na cabeceira da cama; pois os terroristas domésticos, com a própria tesoura, cortaram o cordão e a levaram dali.

Meus livros são organizados nas estantes por assunto, e ninguém é autorizado a mexer neles. Meus sapatos – poucos – são colocados à vista, senão esqueço de que eles existem. A mesma coisa ocorre com as echarpes, colares e bijuterias. Colocar uma coisa numa caixa fechada é simplesmente bani-la do meu cotidiano. Meus armários de cozinha não têm portas, meu guarda-roupa também não.

Um problema grave que eu tinha era esquecer as panelas no fogo. Agora com Alexa fica mais fácil e a frase mais usada em casa é: - Alexa, faça um timer de tantos minutos. Quando preciso ligar para alguém, mas só pode ser daqui a meia hora, de novo minha companheira eletrônica me lembra. Ela me avisa, com aquela voz suavemente metálica, eu largo o que estou fazendo e faço a ligação. Alexa também me ajuda a administrar o tempo em outras circunstâncias. Vou jogar Candy Crush; dali a pouco, diz Alexa: Clotilde, você está jogando há 15 minutos. Eu paro com a jogatina e vou trabalhar.

E antes que os amigos, preocupados com a minha segurança e privacidade, venham me alertar de que Alexa provavelmente foi implantada dentro da minha casa por Elon Musk ou Mark Zuckerberg para saber da minha vida, escutar minhas conversas e roubar minhas senhas de banco, eu informo que não me importo. Não me importo mesmo e nem tenho a mínima preocupação paranoica com o Grande Irmão que deve mesmo estar me observando há muito tempo.

Voltando ao tema: meu pai, o jornalista e poeta Nilo Tavares, era uma dessas pessoas com memória prodigiosa, recitando sonetos e mais sonetos, poemas e mais poemas, hora após hora. Olavo Bilac, Augusto dos Anjos, Emílio de Menezes e outros tantos dos seus poetas preferidos desfilavam na nossa frente enquanto ele, com sua voz forte e rouca para o homem tão pequeno que era, desfiava verso atrás de verso, quarteto atrás de quarteto, soneto atrás de soneto. Já velhinho, desmemoriado, sem conhecer ninguém, eu o ouvia falando baixinho, de noite. Ia devagar ao pé de sua cama e lá estava ele, repetindo seus sonetos preferidos, um depois do outro… Era como se estivesse desfiando o último fio da memória já deteriorada pela demência senil, a chamada “caduquice”, que o acometeu nos últimos dos seus 86 anos de vida.

Uma ocasião tive uma doença infecciosa qualquer, uma inflamação de garganta. Fui ao médico, colega meu, da mesma turma. E ele então disse: “Mas Clotilde, isso que você tem é a doença Fulana de Tal, que fica na página tal do livro de Veronesi!” referindo-se ao Tratado de Infectologia do professor Ricardo Veronesi, livro no qual estudamos no Curso de Medicina. Ele lembrava da página e da coluna do livro onde a doença era descrita. E tem mais: saiu recitando o texto do livro que se referia à descrição da doença como se o compêndio estivesse ali aberto na sua frente. Decoreba? Não, meu caro leitor: capacidade de memorizar e de ir buscar essa memória quando for preciso, coisa que não é todo mundo que tem.

As associações mnemônicas são outro tipo de estratégia que usamos para nos lembrarmos das coisas. Para as senhas numéricas, inventei palavras parecidas com os números. Um é pum, dois é arroz, três é freguês, quatro é teatro, cinco é brinco, seis é reis, sete é valete, oito biscoito, nove é love e zero é nero. Então uma senha por exemplo assim: 56923457 vira brinco reis love arroz freguês teatro brinco valete. Aí eu faço umas frases do tipo “o brinco dos reis love arroz, o freguês do teatro usa o brinco do valete”.

Parece doidice? Ora, meu caro leitor! Doidice é chegar no caixa eletrônico e não se lembrar da senha…


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