Eu aos dois anos de idade: Nos instantâneos da vida é onde mora a felicidade
Colunas
Nos “momentos plenos” é quase possível sentir a respiração de um deus sentado ao nosso lado
10 de novembro de 2022
Clotilde Tavares
Um dia desses eu andava meio chateada da vida e uma pessoa amiga, com quem eu iniciei um desabafo, disse: “Besteira, Clotilde. A vida é assim mesmo, tem dias bons e ruins. Sabe o que é que eu faço quando estou assim? Faço uma relação de todos os momentos bons que já vivi na minha vida.”
Eu, que adoro uma novidade, parti imediatamente para fazer a tal lista onde relacionei as obviedades: nascimento de filhos, netos, meus livros lançados, os prêmios que ganhei, o dia da formatura, o dia em que passei no vestibular… Aí depois descobri que não era isso que aquela pessoa queria dizer. Descobri que aquelas coisas boas que eu havia listado eram maravilhosas, e eu agradeço aos deuses todos os dias por elas. Mas descobri também outra dimensão da felicidade, que eu chamo de “felicidade-em-si”, cujo prazer é tão intenso mesmo na sua recordação que espanta para longe qualquer tristeza e chateação. São os chamados “momentos plenos”, onde é quase possível sentir a respiração de um deus sentado ao nosso lado. Quer ver?
Momento um. É uma tarde de verão. Estou no Recife, na garupa da moto de Morse Lyra Neto, procurando um apartamento para alugar. O ano é 1978 e meu curso de mestrado se inicia daí a alguns dias. Estou mudando de cidade, excitada e curiosa pela nova vida. Serpenteando velozmente por entre os carros, com o vento desarrumando meu longo cabelo – não era obrigatório usar capacete nessa época – a sensação é de liberdade plena e excitação com a nova vida.
Momento dois. Tenho três ou quatro anos de idade e minha tia Adiza acaba de me vestir e pentear. Sinto a aspereza do piquê do vestido, um tecido branco, encorpado, com minúsculos pois vermelhos salientes, e o cabelo repuxado para cima e torcido sobre si mesmo, abraçado no aperto do laço de fita em tafetá de seda. Titia arremata a obra com gotas de água de colônia Regina e diz para minha mãe: “Vem ver, Cleuza, como Clotilde está linda!” E eu, que sempre fui muito feia na infância, experimento esse raro momento, envolvida por uma temporária aura de beleza.
Momento três. Sento-me ao computador para escrever. Não tenho assunto. Mas sei que, tão logo coloque os dedos sobre o teclado, os temas surgirão. Uma eletricidade toma conta das minhas mãos e se irradia para a ponta dos dedos. O coração “fica aflito, bate uma, a outra ‘faia’”, como na canção popular. Respiro fundo e vou em frente, com a cabeça cheia de ideias e a plenitude de poder compartilhar essas coisas com você, aqui e agora, meu caro leitor.
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