O cinéfilo Seu Inácio viu mais de 20 mil filmes e sua história virou documentário

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Fênix de um filme sem fim

Carlos Gurgel fala sobre o cinéfilo Inácio Magalhães de Sena, o Bispo de Taipu, homem das ruas dos cinemas do mundo

21 de outubro de 2020

Carlos Gurgel | poeta

Esse vídeo que ontem você viu. Parece que ele te machucou por inteiro. A vida. o sangue que dentro dele/dela escorre. esse arado limpando seu cobertor, irmão do amanhã do perfume de uma tarde que nunca se vai. música dos mapas: aquela ruazinha escondida por sobre a cidade das cinzas. e por todos os habitantes dessa incalculável casa do mundo. desses objetos pulsantes, aguerridos e inesperados. como se fossem tigres selvagens de um tempo que virá. lava as mãos. não deixe que elas acumulem o verniz possuído dentro desses dias moidos.

Prantos, perímetros, prostíbulos desses insubmissos dias inacabáveis. revire com seu escuro casaco, encalacrado e tecido, essa encíclica sequência dos saltos por onde as tabuletas que te seguem, arrastando com seus ombros, a lancinante procura das partidas e das chegadas, do que o encalço do alto, transfigurado como um açoite, te revelou; justo por onde a fumaça dessas promessas sem velas e joelhos penitentes, pariram uma crédula, cédula volátil dessa reta e dessa gruta.

Eu sei Inácio, eu sei que um dia você gritou. um dia, Inácio, você gritou infinitamente, pioneiramente alto, como um caminhante desse dilúvio que agora nele estamos. não que você não grite mais. não é isso. é que depois, o seu grito se transformou em uma embarcação por onde todos seus sonhos, por onde todos os lugares onde voce esteve, se tornaram tão reais, e alucinadamente inesquecíveis de eternos côros. suas mãos, Inácio, elas unem pedaços de incalculáveis anunciações, completamente díspares de qualquer outro pôr do sol. sua língua, Inácio, são como cortantes dobras ao mar. libertas da maldade humana. e suas aguerridas arcadas vividas, Inácio, confabulam com cardumes, exórdias, permanentes passatempos ao luar. no seu silêncio, as milhares de árvores existentes, se tornaram suas melhores amigas. e como força da expressão da sua firmeza, nuvens e mais nuvens te vestem da chuva por onde incontáveis reinos animais, te/se glorificam e multiplicam-se. então como um sítio alfabético, a lonjura do conhecimento que te cerca e protege, páginas de livros acompanham seus olhos avidamente. movimentos de um ser que se faz soma.

Lona do ápice do cume de um círculo de magia e ardor. múltipla face de quem sabe o cheiro da noite e a partida das manhãs para o depois. aduba cada vez mais seus pés, de agora por diante. mais esquinas, estradas, janelas, encruzilhadas, portais de igrejas, murais de galerias, feiras espalhadas pelo mundo. uma infinidade de ruelas, comunidades escondidas, variedades de grãos, nozes, o candeeiro, o silêncio das estradas. luares, sóis, mares. a terra, o grão da eternidade por um dia.

E aí sumiu tudo que um dia era inteira tela. Como se pudéssemos esticar essa medida até próximo aos nossos pés e olhos. a dimensão da geografia que a pessoa carrega no coração. todas as manhãs vividas. todas as caminhadas íngremes. todo o calor. toda a imensidão do frio. do que as estações guardam infinitamente para elas. e do pranto   do bardo do bueiro do que se transformou o urbano. toda essa teia tátil e tântricos tapumes e tacapes. essas caçadas pelos paços de orifícios espalhados pela esteira do ar. a   raia que espreguiça ócios anseios, tristes luares e o subterrâneo instante da crosta da face das pessoas. em coma, estafermo queda, sem lubrificação. histerismo e sincretismo. o réptil desse roubo de cena dessas incontáveis e incontroláveis madrugadas por onde todas as tribos virtuais encalacraram-se de distopias e cruéis dúvidas se espalhando por toda a exígua face de quem não espera, não olha e nem socorre . vento do mundo em distopia. trôpegos frontispícios borrifam por todos os espaços. respiração que abriga fumaça, fuga, finitas falas e falos.

Saciedade cinematográfica: cinema como sua fronteiriça casa. por ele, por ela, esse seu respiro e essa sua fé. voraz catapulta das imagens capturadas e libertas. de luz, da sua fome, como diálogo com o mundo por onde a espessura, alinhamento de todas as linguagens do mundo visível, invisível, passado, presente e futurista, procriam, pululam e se perdem. perfilam, regressam e transgridem. a carne, o cromo, o cerne das estátuas, das esfinges, da multiplicação dos corpos sem nó, sem nós. tudo do que nos rodeia e voa. como um eclipse sem suor, caravelas, centímetros acostumados com esse desconhecido tempo precioso, mais que as antenas do que porventura estejamos sendo vistos, vigiados. o som que sai da babel torre, idéias desses largos trêmulos encharcados de um porvir, de uma reza única.

Tudo ao encalço do segundo. um passo a frente e tudo radicalmente espouca, papiros e vampiros de um sol rasgando primaveras e espasmos de um terreno que lança lanças, poço raro qual mortífera metáfora como exuberante cachoeira do gozo do vazio entre a vida e a morte.

 Teu pensamento, homem das ruas dos cinemas do mundo, é como um carretel de deseducados roteiros únicos, elixir para os pássaros rebeldes como se fossem títeres transversais, inúmeras tatuagens destemidas. como se fossem roteiros de um aço de arco raro, paraninfo dessas rubras estações, intempéries de tudo que um dia você contará sem nada esquecer, essa poderosa peleja, urdidura de um farol sem intervalo das retinas e rotundas. habitante, sobrevivente de um ciclo do cosmos que aduba. celebra, enfeitando seus olhos e sua dança. Inácio e esse seu largo viver sem resíduos do escuro proposital e ventríloquo. alteza que se ergue entre seus mares e montanhas, esses dois arcos de um outro universo dos seus sonhos. peregrino das esquinas da sua porta, perpétua e profeta, arremessando codinomes dessas raízes da natureza que você mesmo, apalpou, misto de tanto incontrolável guia e esplendor. veste teu lar, marinheiro. cruza novamente esse seu portal, desfraldando como uma criança centenária, a bravura de viver despido da estátua da empáfia. simplesmente ar, um sorriso. chão festejando os seus pés como rota rica de plena poesia e de tanta luz para todos nós.