A escritora carioca Gabriele Rosa aborda temas feministas em sua obra

Reportagens

Gabriele Rosa: "Desigualdades de gênero, raça e diversidade sempre estiveram enraizadas no mercado"

Para a autora, existe um movimento emergente de resgate (e reparação histórica) de autoras silenciadas e outras mulheres do mercado editorial

25 de novembro de 2022

Cefas Carvalho 

Nascida no Rio de Janeiro, onde mora até hoje, em 1988, Gabriele Rosa é historiadora, poeta e dramaturga de processos. Atua como dramaturgista no projeto Bonecas Quebradas. É autora dos livros “Fendas extraordinárias” (Patuá, 2019) e “Lavínia é mais Rosa que Espinho (Motta, Carla, Libertinagem, 2022), recém-lançado. Tem contos e prosas poéticas publicados em mídias impressas e digitais no Brasil, Portugal e México. Colabora mensalmente com a coluna memórias táteis, intempéries e outras derivas na Revista Ruído Manifesto. Nesta entrevista, ela falou sobre seu trabalho, condição da mulher escritora no mercado editorial. projetos e muito mais. 

Junto com Carla Motta, você lançou recentemente o livro "Lavínia é mais rosa que espinho", que reúne prosas poéticas sobre violências cotidianas de gênero e definido como "uma obra onde femininos diversos narram horrores banalizados e brutalidades há muito tempo enraizadas na sociedade contemporânea em tom de denúncia, de abraço e de troca". Como foi o processo de escrita e publicação desse livro e qual a importância de abordar essa temática?

Em 2021 a editora Libertinagem abriu uma chamada inaugural de originais, exclusiva às mulheres. Após ver um post no Instagram da editora fiz o convite à Carla para criamos juntas o “Lavínia-livro”. O processo de criação foi intenso e imersivo, tecemos um método de coautoria que aglutinou nossas poéticas distintas, respeitou nossas singularidades artísticas e expandiu uma linguagem-outra que podemos chamar de “nossa”, já que escrevemos os textos separadas. A minha parceria artística com a Carla nasceu junto com a com nossa amizade, durante a graduação em História na UFRRJ. Escrever com ela é um movimento-correnteza de muita organicidade, é partilha das raras. Lavínia é mais rosa que espinho vestida de livro é um ajuste de olhar e um convite à reflexão: um acontecimento, luta e luto. As temáticas sobre mulheres, mulheridades e violências de gênero atravessam a minha obra e me interessam particularmente, assim como os processos colaborativos. Mergulhar nas feridas e nos silenciamentos dos femininos com fôlego de mar aberto é urgente, para além do caráter de denúncia, mas como possibilidades de criação de redes de afetos, enfrentamentos e reexistências via múltiplas linguagens artísticas, já que o Brasil - mesmo após a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) – é o 5º país que mais mata mulheres no mundo, além de ser um dos mais violentos para pessoas dissidentes da norma cis-hétero-normativa.

 

Você faz parte de laboratórios de experimentações poéticas por meio de música e dramaturgia como Cuidado Poema e Shakespeare Navalha. Como funcionam esses projetos e em que eles impactam a sua produção? 

Foram instalações performáticas progressivas de inanimados, que ocorreram no ICHS – campus Seropédica da UFRRJ. A partir dos estudos da paralaxe como método comunicativo-expressivo e metalinguístico, e experimentos colaborativos via encruzas entre áreas do conhecimento em Humanidades e Artes, desenvolvemos as marginações literárias. Como laboratórios de experimentações são desdobramentos acadêmicos do projeto “TRÍPTICO GERMINANTE CRÍTICO-GENÉTICO: NARRAÇÃO, MÚSICA & TEATRO”, concebido por Alexander Martins Vianna em parceria com o ator, músico e artista plástico Joel CostaMar, também integrado por Carla Motta, Gabriel Folena e por mim.  O projeto propõe letramento histórico crítico-genético em ambientes diversos, e isso inclui os espaços contra-hegemônicos. E foi nessa margem que cavei fendas de sentidos-outros e reuni minhas marginações literárias em livro, assim foi parido o Fendas extraordinárias.

Os projetos foram fundamentais (e são, há frutos e nutrimentos contínuos), rizomas semeados na minha trajetória. E hoje, os processos experimentados por mim nesses laboratórios crescem horizontalmente nos meus trabalhos, que se expandiram em múltiplos campos artísticos. Alexander, Joel, Carla e Gabriel seguem me atravessando enquanto artistas, pesquisadores e amigos. Agradeço imenso a todos eles, pelas risadas e pelos erros, pelas tramas e cozeduras partilhadas, as voltas e reviravoltas nos processos, pelos caos e cosmos produzidos, e por todos os espelhos que atravessamos juntos. Se abracei com afeto a minha escrita, os projetos têm seus corpos inteiros nessa escolha. (Para conhecer os projetos, aqui: https://www.facebook.com/cuidadopoema/.)

 

Você lançou em 2019 o elogiado livro de contos "Fendas Extraordinárias", pela editora Patuá. Como foi o processo desse livro? Pensou os contos como algo conceitual ou foram textos escritos de forma autônoma ao longo de anos?

fendas foi um rito de passagem na minha trajetória, a partir dele a escrita se consolidou como o meu caminho de expressividade, escolhi de fato essa travessia ourobórica. Foi uma grande alegria ele ser acolhido pela Patuá, casa editorial que eu já admirava e lia as publicações, também uma surpresa: não tinha expectativas com o objeto livro. Havia o desejo de ser lida, fazer com que os meus textos circulassem, e a publicação foi a que primeiro encontrou as minhas palavras, assim o livro ‘aconteceu’. Os contos foram escritos no período de um ano e meio, como exercícios de marginação literária durante as disciplinas optativas sobre letramento histórico crítico-genético e escrita criativa, ministradas no curso de História da UFRRJ pelo docente de História Moderna Dr. Alexander Martins Vianna. O processo de escrita foi imersivo e arrebatador – penso que não sei fazer nada que não seja imersivo, que não tenha o meu corpo à disposição do experimento-linguagem. Foi um período de (re)conhecimento da minha própria escrita. Atravessei o espelho. Durante a feitura dos contos percebi a necessidade de pensar uma classificação (possível) do experimento narrativo criado. Apenas necessitava nomear a narratividade tecida em camadas temporais múltiplas, que não se aproximavam dos artifícios do flashback e viagem no tempo. Desde então, passei a adotar a classificação de ‘contos regressivos’, talvez o caráter conceitual do livro esteja aí, na forma, mas o intuito foi mapear dentro do gênero como a construção de desentendimento do que se narra ocorre no tempo regressivo da consciência de quem conta, considerando um narrador em primeira pessoa que se desentende enquanto avança (regride) e o exercício constante de criar códigos de plausibilidade. O que se tornou um método de escrita, uma artesania. Entendo o Fendas Extraordinárias como um exercício de linguagens despretensioso e aberto às leituras de quem o encontra.

 

 Como foi sua produção literária durante o período mais agudo da pandemia, de confinamento e sem vacina? Conseguiu ler e escrever nesse período? Em que impactou sua literatura? 

Segui trabalhando de casa, estava em um processo colaborativo de criação dramatúrgica, ressignificado com o virtual, tive o privilégio de me manter em distanciamento social integralmente até a vacina. Mas demorei pra refabular a minha vida, e repensar a minha rotina. O medo sempre iminente, as notícias diárias, as muitas perdas – que são coletivas - é impossível hoje falar de 689 mil mortos sem sentir esse luto. Nós perdemos 689 mil pessoas pra Covid-19, e muitas dessas pessoas morreram em decorrência das políticas de morte engendradas pelo governo ainda vigente, mas que tão logo (e finalmente) se encerrará. Que a gente jamais esqueça! A literatura e o teatro seguraram com afeto minha saúde mental fortemente durante o auge da pandemia, assim como minha família, o que teve muito impacto no meu modo de criar. Eu fiz muitas imersões de escrita e experimentei novas encruzas de linguagens artísticas. Nesse período, o tecnovivio foi fundamental para os meus processos criativos: participei de laboratórios de criação virtuais, estudei, conheci pessoas, reencontrei o meu ritmo de leituras, e publiquei em muitas revistas digitais, isso foi um grande fôlego, principalmente pelas trocas a partir das publicações. Tenho alguns projetos de livros, performance e instalação visual, produzidos nesse período pandêmico, que estará no mundo no próximo ano.

 

 Como avalia a situação da mulher escritora no mercado editorial brasileiro? O espaço é igual ao dado para os escritores homens? E existe machismo no mundo literário brasileiro? 

As desigualdades de gênero, raça e diversidade, sempre estiveram presentes e enraizadas no mercado editorial brasileiro - reflexo da nossa sociedade sistematizada na forma neoliberal patriarcal, machista, misógina e racista. As mulheres ainda sofrem com apagamentos e silenciamentos, e a partir da publicização de seus trabalhos e inserção nos processos editoriais muitas enfrentam a materialidade cruel do machismo via assédios – violências de gênero. Apesar disso, nós mulheres estamos conquistando e ocupando espaços relevantes na literatura brasileira contemporânea. Percebo mais escritoras com acesso à publicação de livros, uma crescente circulação de textos em revistas literárias digitais e impressas, um movimento emergente de resgate (e reparação histórica) de autoras silenciadas; temos editoras, tradutoras, ilustradoras, revisoras e etc, nas linhas de força da estrutura editorial. São mudanças significativas, mesmo que ainda muito pequenas diante do macrocosmo mercado editorial. E quando falamos de mulheres negras, indígenas e trans, essas mudanças são infinitamente menores. Ainda assim, ressalto aqui, a importância das editoras independentes, das revistas literárias digitais e impressas, dos coletivos de mulheres voltados à escrita, dos espaços literários contra-hegemônicos e do uso das mídias digitais na abertura desses caminhos, no processo de fortalecimento e de criação de redes de trocas e afetos entre escritoras, e publicização de seus trabalhos. Deixo aqui um desejo por políticas públicas de democratização do acesso aos livros, e por maior abertura às mulheres ao mercado editorial. Que mais mulheres editem, traduzam, ilustrem, e sigam escrevendo. Que possamos publicar livros e ocupar os lugares que desejarmos, e principalmente, que sejamos lidas.

 Quais as suas influências literárias e os/as autores/autoras que mais lê? 

Gosto de citar os que estão sempre na cabeceira e os que estou lendo (e me atravessam) atualmente, não necessariamente nessa ordem: Ana Cristina Cesar, Grace Passô, Roberto Bolaño, Alejandra Pizarnik, Carolina Maria de Jesus, Guilherme Gontijo Flores, Dodi Leal, Cidinha da Silva, André Capilé, Susan Sontag, Nina Rizzi, Lubi Prates, Gal Freire, Julio Cortázar, Matheus Guménin Barreto, Miriam Alves, Victor Heringer, Jeferson Tenório, Marcelo Ariel, Carla Diacov, Paul Celan, Walter Benjamin, Leda Maria Martins, Guimarães Rosa, Janaina Leite, Lélia Gonzalez, Machado de Assis, Jota Mombaça, Teresa Cárdenas, Wislawa Szymborska, Silvina Ocampo, Gabriel Morais Medeiros, Michel Foucault, entre alguns outros. Estou sempre aberta aos encontros e diálogos e espantos, com as obras de outres.

 

 O Prêmio Nobel de Literatura deste ano foi para uma mulher, a francesa Annie Ernaux, e nos últimos anos as mulheres vem ganhando mais espaço entre finalistas e vencedores de premiações do Brasil. O que pensa disso?  

Penso que caminhos de reconhecimento do trabalho literário de autoras estão sendo conquistados nos meios institucionais, mas não podemos esquecer da falta de equidade. Neste caso, de 119 laureados com o Nobel de Literatura (desde sua criação em 1901), apenas 17 são mulheres. Quando vislumbro o cenário literário contemporâneo brasileiro nos próximos anos, acredito que cada vez mais teremos mulheres escrevendo, sendo publicadas, também mulheres editando mulheres, recebendo reconhecimento público e prêmios por seus trabalhos. Este ano, temos cinco finalistas mulheres (Natalia Borges Polesso, Andréa Del Fuego, Micheliny Verunschk, Aline Bei e Tatiana Salem Levy) na categoria Romance Literário do Prêmio Jabuti, assim como ano passado tivemos cinco finalistas mulheres na categoria Poesia. Fico muito feliz com estas indicações (e com mulheres sendo premiadas), também com o Nobel à Annie Ernaux, acompanho o trabalho dela há algum tempo e gosto bastante da sua escrita autobiográfica. É uma alegria ver mulheres conquistando e convocando espaços na literatura com bons e relevantes trabalhos. Estamos (aqui me incluo) rompendo com os silenciamentos, e esse é um avanço coletivo.

 

 

Quais os seus próximos projetos literários? O que espera de 2023 no tocante à literatura?

 

Estou sempre aberta às estranhezas e aos deslocamentos dos meus processos. Portanto, estarei em movimento de correnteza-criação sem delimitação de tempo, seguirei escrevendo e trabalhando em projetos culturais voltados à literatura e ao teatro, os processos me são caros e respeito o tempo de cada um deles. Programadas, eu tenho três publicações (dois livros e uma plaquete) para o primeiro semestre de 2023. Há também dois desdobramentos de instalações performáticas para o período citado. No tocante à literatura eu espero fomento, maior democratização do acesso aos livros via políticas públicas e pluralidades de gênero, raça e territórios.