Como as Madres de la Plaza de Mayo, protagonistas da história e testemunha das transformações

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Há pessoas para tudo?

Sim, há pessoas para o qual fazer o necessário é o único caminho para transformação da própria realidade posta

04 de junho de 2024

Ítalo de Melo Ramalho

Ao percorrer as redes logo cedo, leio no perfil da Professora Débora Diniz uma justa homenagem à Nora Cortiñaz. Cortiñaz foi uma das mães fundadoras do movimento “Madres de la Plaza de Mayo”, que partiu recentemente para o desconhecido, sem nunca ter (re)encontrado o seu filho desaparecido durante o período ditatorial da Argentina (1976 – 1983). Diniz arremata a justa reverência com a seguinte frase: “há pessoas que são protagonistas da história e testemunha das transformações”.

Fugindo, ou melhor, ampliando a interpretação da citação, sem querer transformar a croniqueta em um tratado filosófico, e, tampouco, dissertar sobre o perseverante movimento das mães argentinas, dois temas invadiram o mundo desta crônica emergidos da frase acima destacada: história e transformação. 

Aqui na rua em que moro em Aracaju − que costumeiramente chamo de minha rua −, dia sim e dia sim transita uma jovem senhora recolhendo material reciclável. Recorrendo a metáfora digo: história em constante transformação. Considerando o que vem acontecendo mundo afora em termos políticos e climáticos − a ciência já avisava, em tempos remotos, que a humanidade iria pagar essa dívida − o papel que essa “invisível” desempenha na selvageria dos dias é fundamental para o seu (dela) e para o nosso sustento. 

Ela certa vez me disse que conseguia tirar de 30 a 50 reais por dia. E aproveitando que ali estava, com o diálogo já iniciado, comecei a perguntar mais coisas: O que ela achava que o poder público deveria fazer para fomentar mais e mais políticas de valorização do trabalho de catadores/as? Quais eram as condições de segurança quando desempenhava aquele ofício? A senhora sabe que o seu papel social é importantíssimo para a coletividade? Para o ecossistema? E que a sua contribuição só engrandece a condição humana? 

Depois, dessa chuva de indagações, Dona Severina, sorrindo, me respondeu a todos os questionamentos com uma só resposta: eu faço isso porque preciso! E é aqui que a vida dela se abraça com a de Cortiñaz, que também lutava porque precisava. Diante daquela resposta, me dei conta de como estou enfiado em um mundo paralelo, permeado, inclusive, pela arrogância e pela prepotência que justificam a luta dessas duas senhoras pela transformação da história e da vida.      

Por fim, penso: sim há pessoas para tudo, inclusive para o serviço de evidenciar a realidade francamente posta. Como os cartoneros de Buenos Aires, retratados em El carrito de Enéas (2003) de Daniel Samoilovich, as personagens desta crônica são a síntese das verdades do nosso tempo. São o retrato da nossa história e, possivelmente, da nossa sonhada transformação. É preciso mais do que reciclarmos o papel-gente: é necessário potencializarmos os saberes. 

*Ítalo de Melo Ramalho é advogado e mestre em antropologia (UFS).