Sou grata por ter que ler toda a minha biblioteca de novo, com outros olhos
Colunas
Ser historiador, para mim, é uma coisa muito séria, e exige tempo, energia e responsabilidade. O curso é uma experiência intelectual soberba
28 de setembro de 2022
Clotilde Tavares
Sou daquele tipo de gente que gosta de celebrações. Como faço aniversário em dezembro, tenho o ano inteiro para planejar como vai ser a festa. Mas além de jantares, almoços e outras formas de comemorar, a que eu mais gosto é quando tem uma peça minha em cartaz e a plateia canta os parabéns para mim, ou então quando estou autografando livro novo.
Em dezembro de 2017 eu completei 70 anos de idade. Resolvi então lançar um volume com 70 crônicas, uma para cada ano vivido, o que foi fácil, porque era só selecionar entre as centenas de textos cuja escrita tem sido a minha melhor distração. Mas a data era redonda, era bonita, e eu resolvi fazer uma comemoração estendida, com eventos ao longo do ano inteiro. Inventei então um bocado de coisas, na intenção desses meus 70 anos. Uma viagem à Europa, que fiz, à região da Andaluzia, na Espanha, que sempre quis conhecer; aprender a nadar, o que quase fiz porque, apesar de não ter conseguido aprender a me deslocar feito peixe na água azul da piscina, pelo menos aprendi a não afundar, superando o determinismo da minha origem caririzeira de ser raceada com bode. Também teve uma coisa que eu queria fazer, mas terminei não fazendo: minha primeira tattoo, pois fiquei com medo da dor e, como tomo anticoagulante, considerei que não era prudente nem indicado.
Enquanto ia planejando e fazendo os eventos ao longo do ano e preparava o livro que lançaria em dezembro, achei que ainda era pouco e resolvi fazer o ENEM, só para me desafiar, só para saber se a minha cabeça, aos 70 anos, ainda estava prestando para alguma coisa. A proposta era arriscar, e fazer sem estudar. Pois fiz, obtive 644 pontos, e disse: passei, então vou cursar. Os pontos obtidos me permitiram acesso a um variado leque de opções, e eu escolhi o curso de Bacharelado em História, na UFRN.
Você deve estar aí perguntando se eu já concluí, se já me formei. Não, não me formei. Não tenho essa pretensão. Ser historiador, para mim, é uma coisa muito séria, e exige mais tempo, energia e responsabilidade do que atualmente tenho disponível. Mas a partir do primeiro semestre de 2018 eu venho cursando o que posso e o que me agrada. Primeiro, presencialmente, depois por via remota. Agora, nessa época pós-pandêmica, tranquei o curso e terminei decidindo não continuar. Mesmo assim, o curso tem sido para mim uma experiência intelectual soberba, de alta qualidade, que modificou toda a minha maneira de ver e entender o mundo. Fico pensando que eu deveria ter cursado História quando jovem e aí hoje, talvez, minha vida fosse toda diferente.
Nesses anos, as coisas boas do curso foram a convivência com os jovens. Com eles aprendi muito. O contato com essa juventude me abriu os olhos para um mundo que eu não teria condições de conhecer se não fosse através do olhar deles. Sou grata a cada um que trocou comigo um cumprimento, uma frase, um bate-papo mais comprido, e que teve paciência com a pessoa verborrágica que sou. Agradeço àqueles professores que me apresentaram mundos novos e perspectivas instigantes, ampliando meu olhar e as minhas capacidades de interpretação e compreensão do mundo. Amei conhecer autores como Marc Bloch e Michel de Certeau, que eu nunca tinha ouvido falar, e aprofundar outros que eu conhecia mais superficialmente. Finalmente, sou grata por ter que ler toda a minha biblioteca de novo, com outros olhos.
Mas estou deixando o curso. Além de já ter cursado todas as disciplinas pelas quais eu tinha simpatia, a energia física para ir e voltar do Campus, além de permanecer por horas sentada naquelas cadeiras é mais do que o meu combalido corpo pode aguentar.
Deixo o curso, mas não deixo as leituras e estou aqui com uma pilha de livros recém-chegados para dar conta: A Invenção das Tradições, de Hobsbawm, Comunidades Imaginárias, de Benedict Anderson, A Sagração da Primavera, de Modris Eksteins, e o espetacular Palavras-Chave, de Raymmond Williams. Todas essas leituras me foram suscitadas pelo curso de História, em um ou outro momento, em uma ou outra disciplina.
E mais na frente, se eu sentir falta e quiser voltar, é só fazer ENEM de novo, e vai ser mais fácil porque aprendi coisa pra caramba nesses cinco anos. Quem viver – eu inclusive – verá.
http://linktr.ee/ClotildeTavares clotilde.sc.tavares@gmail.com
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