Dados subnotificados escondem violência contra a mulher no Brasil - Foto: Fernando Frazão/AB

Reportagens

Homicídios femininos: Taxa de assassinatos de mulheres aumenta 31% no Brasil em 40 anos

Apesar das medidas legais de proteção às mulheres em situação de violência, a pesquisa mostrou o aumento do risco de morte no Norte e Nordeste

21 de março de 2023

Por Agecom/UFRN
 
A correção dos registros de óbito do Sistema de Informação sobre Mortalidade do Sistema Único de Saúde (SIM/DATASUS) demonstrou que as taxas de homicídio de mulheres foram subnotificadas no Brasil num período de 40 anos, entre 1980 e 2019. Dados preliminares, de uma pesquisa que serão publicados nos próximos meses pela revista Violence Against Women, atualizam os números e mostram que esse tipo de crime aumentou 31,46%, saindo de 4,40, no começo da série histórica, para 6,09 assassinatos a cada 100 mil mulheres. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), regiões que registram óbitos acima de 3 para cada 100 mil  já se caracterizam como de extrema violência para as mulheres.

O estudo, coordenado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em parceria com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Fiocruz do RJ e de Belo Horizonte, evidenciou que na região Norte esse tipo de ocorrência foi maior 49,88% do que o apontado pelos dados oficiais. Isso representa 6,46 mortes violentas para cada 100 mil mulheres e não 4,31/100.000, como mostrou o SIM. O Nordeste vem logo em seguida, com aumento de 41,03% (passando de 5,58 para 7,87 óbitos por 100 mil mulheres). O menor índice foi observado na região Sul (2,86 para 4,30), embora também tenha sido registrada diferença para cima de 9,13%. 

Apesar das medidas legais de proteção às mulheres em situação de violência, a pesquisa mostrou o aumento do risco de morte por homicídios femininos e homicídios femininos por arma de fogo nos período de 2000 a 2014 nas regiões Norte e Nordeste e redução nas regiões com maior desenvolvimento socioeconômico: Sudeste e Sul. Nesse período houve crescimento também no número de mortes violentas, com crescimento progressivo da faixa etária de 15 a 19 anos até a faixa etária de 35 a 39 anos. Por outro lado, registrou-se redução constante a partir do intervalo de idade dos 45 aos 49 anos, informação observada no Brasil e em todas as suas regiões geográficas. 

A pesquisadora Karina Cardoso Meira, da Escola de Saúde (ESUFRN) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem/UFRN), esclarece que o maior risco de violência de gênero e homicídios em mulheres jovens deve-se ao fato de esse grupo etário ter exposição a múltiplas vulnerabilidades para agressão machista, como a familiar e a de parceiros e ex-parceiros. Outra resposta pode ser a cultura conservadora do país – especialmente nas regiões Norte e Nordeste. “Quando as gerações mais jovens, que vivenciaram mudanças socioculturais significativas, indagadoras do papel destinado ao gênero feminino na sociedade patriarcal, ousam não performar os papéis tradicionais de gênero, aumentam a probabilidade de sofrer violência de gênero. Isso devido a uma reação do patriarcado, usando a força, inclusive letal, na tentativa de que as mulheres reocupem a sua posição de submissão”, pondera a pesquisadora.

De acordo com Karina, primeira autora do trabalho, o estudo demonstrou que as taxas de assassinatos em mulheres estão subnotificadas devido à má qualidade da informação fornecida pelo sistema nacional. “Muitos registros de óbito que são mortes por homicídios têm o atestado de óbito classificado como evento cuja intenção é indeterminada. Além disso, há subnotificação dos óbitos, ou seja, mortes que não são contabilizadas nos registros administrativos da saúde e do cartório de registro civil”, conta.

Apesar de revelador, o artigo faz parte de uma pesquisa que se iniciou em 2017, já com pelo menos quatro publicações sobre homicídios no Nordeste do Brasil, Homicídios masculinos em duas regiões do Brasil, Homicídios de mulheres nas diferentes regiões brasileiras e tendência temporal da taxa de homicídios de mulheres brasileiras. Esses estudos, segundo Karina, evidenciam uma correlação entre violência urbana, assassinatos masculinos e violência de gênero. Assim, nas localidades com altas taxas de criminalidade, há aumento desse tipo de crime. 

Pesquisa aponta que houve interiorização da violência – Imagem: Canvas

 

Além de Karina, participam do estudo Homicídios femininos no Brasil e suas grandes regiões (1980-2019): uma análise dos efeitos de idade, período e coorte os pesquisadores Taynãna César Simões (Fiocruz BH), Raphael Mendonça Guimarães (Fiocruz RJ), Pedro Gilson Beserra da Silva (Hospital Onofre Lopes - HUOL/UFRN), Angelo Braga Mendonça (Instituto do Câncer do RJ), Jordana Cristina de Jesus (PPGDem/UFRN) e Maira Covre-Sussai (UERJ).

Dados insuficientes

Outro aspecto importante mostrado na pesquisa é que, no Brasil, os dados disponíveis no Sistema de Informação Sobre Mortalidade (SIM) não são totalmente suficientes para discriminar se os homicídios de mulheres estão relacionados à violência de gênero, quer seja pelas limitações dos sistemas de informação, que não permite avaliar a relação da vítima com o agressor, quer seja pelo fato de que a tipificação do óbito como feminicídio é competência das forças policiais, não necessariamente preparadas para identificar esse tipo de ocorrência. Muito disso é porque a legislação sobre feminicídios no país é recente. 

Diante desta limitação, o estudo atual propõe indicadores indiretos para avaliar a violência de gênero. Autores brasileiros sugerem avaliar todos os homicídios femininos como um proxy (indicador indireto) para o feminicídio, conforme observado em trabalhos prévios. Outras propostas consistem em considerar apenas os homicídios ocorridos nos domicílios e homicídios nos domicílios perpetrados por arma de fogo. Destaca-se que, em cada um desses indicadores indiretos, evidencia-se aumento das mortes violentas de mulheres com maiores taxas entre as jovens e maior proporção na população negra.

Para Karina Cardoso Meira, os dados surpreenderam porque, com a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) e o Estatuto do Desarmamento (Lei no 10.826/2003), esperava-se redução dos homicídios em todas as regiões do Brasil. No entanto, isso não aconteceu no Norte e Nordeste. “Acreditamos que seja devido ao processo de interiorização e disseminação da violência e também ao menor quantitativo de dispositivos de proteção às mulheres em situação de vulnerabilidade nessas localidades. No entanto, essas Políticas Públicas não se mostraram suficientes”, disse.

A pesquisadora relata que, após 12 anos da implementação da Maria da Penha, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/2019) mostra que apenas 137 dos 5.570 (2,4%) municípios brasileiros possuíam abrigos para mulheres em situação de violência doméstica. “As grandes cidades do Sul e Sudeste concentram esses dispositivos. Além disso, menos de 10% dos municípios brasileiros ofereciam serviços especializados para agressão sexual e somente 8,3% das cidades apresentavam delegacias especializadas para o atendimento às mulheres. Ainda, no período de 2017 a 2019, houve redução de 75% no repasse de verbas para a promoção da autonomia e combate a esse tipo de crime”, reclama a professora Karina.

Segundo a pesquisadora, o baixo financiamento público para proteção social e equipamentos de segurança para mulheres e crianças que se encontram nessa situação é uma das manifestações do desinteresse do Estado brasileiro pela vida. “É necessário maior financiamento para que sejam, de fato, implementadas medidas de proteção às mulheres em situação de violência. As brasileiras continuam morrendo por mortes violentas, especialmente nas regiões com maior vulnerabilidade socioeconômica e com menor quantitativo de dispositivos de proteção”, reforça.