Iara publicou os livros de poemas Milagreira (2011), Saraivada (2015) e Meia porção de sol

Agenda Cultural

Iara Carvalho: “A poesia escrita por mulheres pertence a vozes historicamente silenciadas”

Fundadora do Casarão da Poesia, referência de espaço de difusão literária em Currais Novos, fala sobre livros e a literatura do Seridó

12 de maio de 2023

Cefas Carvalho

Nascida em 24 de dezembro de 1980, em Currais Novos, no Seridó norte-rio-grandense, onde mora até hoje, Iara Maria Carvalho é graduada em Letras e mestra em Estudos da Linguagem, pela UFRN. Ela atua como produtora cultural, através do projeto Casarão de Poesia, e, desde 2019, está na gestão da Casa de Cultura Popular do município. Em duas décadas de trajetória literária, Iara foi premiada em diversos concursos literários estaduais e nacionais, como o Concurso de Poesia Luís Carlos Guimarães, o Concurso de Poesia Zila Mamede e o Concurso Nacional de Poesia Helena Kolody (Curitiba/PR). Publicou os livros de poemas Milagreira (2011), Saraivada (2015) e Meia porção de sol (2021). Atualmente, sua obra tem sido estudada pelo Núcleo de Pesquisa vinculado ao CNPq e pela Universidade Federal do Agreste de Pernambuco, relacionado a pesquisas sobre Literaturas escritas por mulheres.

Sua poesia, para quem a lê, fala sobre sertão mas também sobre corpo, condição feminina com toques de erotismo. Qual a sua visão sobre sua produção poética e os temas que ela trata?

Uma das nuances da minha poética está diretamente ligada à condição feminina, muito mais como uma questão existencial e política, do que erótica. O erotismo, quando presente, torna-se artefato estético que serve à presença feminina pulsante em meus versos. Além da condição feminina, é impossível não encontrar o lugar que a memória e a melancolia ocupam na minha escrita. E o quanto ambos estão intimamente relacionados com o sertão que há em mim, especialmente o Seridó. Seridó, melancolia e memória: é o tripé que sustenta Milagreira (2011), Saraivada (2015) e Meia porção de sol (2021). Mas cada tema atravessando livremente as obras, brincando de ser objetos que se querem únicos e, ao mesmo tempo, amplos.

O assunto é clichê e antigo, mas ainda rende debates: existe uma poesia especificamente “feminina”, que só mulheres seriam capazes de produzir? Dentro da mesma questão, como avalia a produção atual de mulheres poetas?

Prefiro não chamar de poesia “feminina”, mas compreender que a poesia escrita por mulheres traz uma carga de subjetividade diferente, por pertencer a um conjunto de vozes historicamente silenciadas. Penso que escrever a partir do lugar de quem ainda é oprimida tem, além de motivações muito pungentes, um gosto maior pela liberdade em se conduzir por caminhos estéticos diferentes do convencional. Diante disso, a produção atual tem se mostrado de uma efervescência deliciosa. Posso citar as que mais admiro de âmbito nacional: Adriane Garcia, Mar Becker, Líria Porto, Daniella Guimarães, Amanda Vital, Nydia Bonetti, Bruna Mitrano, dentre tantas outras de escrita profunda, seja visceral ou delicada, mas que muito me tocam e me inspiram. As poetas potiguares da contemporaneidade têm um lugar especial em minhas leituras: Marize Castro, Iracema Macedo, Lisbeth Lima, Rizolete Fernandes, Diva Cunha, Carmen Vasconcelos, Ana de Sant’Anna, Jeanne Araújo, Michelle Ferret, Luma Carvalho, Adélia Danielli, Mamafrei, Cristina Moura, Anchella Monte, Marina Rabelo, Regina Azevedo, Letícia Torres, Paula Érica. A lista é mesmo imensa, e ainda crescerá, tenho certeza.

Qual a avaliação sobre a poesia que se faz no Rio Grande do Norte? E por que a região do Seridó gera tantos poetas de qualidade?

O Rio Grande do Norte tem uma tradição literária muito forte e isso tem reflexos na contemporaneidade, destacando nomes nos mais variados gêneros literários. Com o Seridó não é diferente. Sei da nossa identidade cultural potente e o quanto isso corre nas veias de quem é seridoense, em especial, dos artistas da região. Vale salientar que, apesar de também possuir nomes importantes tanto da tradição quanto da contemporaneidade, a localização geográfica em si não é um fator limitante do que se escreve no Seridó. Serve de substância, em muitos casos, atravessando estilo, temas e linguagem dos escritores e das escritoras, mas ultrapassa essas fronteiras, pelo trato formal com que manuseiam essas nuances do lugar, apropriando-se de seridolentes com longo alcance de visão.

Você é uma das fundadoras e coordenadoras do Casarão de Poesia. Fale sobre essa iniciativa.

O Casarão de Poesia é uma ONG que existe há 16 anos aqui em Currais Novos, funcionando como biblioteca comunitária e espaço cultural. Mesmo possuindo uma estrutura física, que, atualmente, abriga mais de 10 mil livros para empréstimo gratuito à comunidade, o Casarão de Poesia ultrapassa essas barreiras, constituindo-se muito mais como um ideal de artistas e produtores culturais que sempre acreditaram na cultura e na educação como mecanismos de crescimento pessoal, desenvolvimento social e exercício pleno da cidadania. Por isso, ao longo desses 16 anos de trajetória, realizamos diversas atividades gratuitamente, voltadas para um público bastante diversificado: rodas de conversa, oficinas, performances poéticas, saraus, lançamento de livros, cursos de grafite, shows musicais, produções audiovisuais, publicações literárias, além dos cursos de violão, sanfona, piano e flauta, que já beneficiaram quase 2 mil currais-novenses, a maioria crianças e adolescentes.

Você já foi reconhecida em vários concursos de poesia. Qual sua opinião sobre prêmios literários?

Acho uma boa forma de incentivar a produção literária dos artistas, embora seja reflexo de opiniões absolutamente pessoais a respeito do material que está sendo avaliado. Ou seja, ganhar ou não ganhar um concurso não deve ser, na minha visão, a meta do escritor, nem tampouco a régua com a qual medirá a qualidade do seu trabalho. Ter uma autoconsciência artística é essencial para que o escritor nem se desestimule por conta dos resultados de prêmios literários, nem se envaideça a ponto de abandonar essa busca que deve ser incessante pela melhor forma de colocar sua voz no mundo através da palavra.

Como vê o intercâmbio entre poetas de regiões diferentes? No Sul-Sudeste leem o que se escreve no Nordeste?

Acho fantástica! Sou da época dos blogs da primeira década do século 20, publicando na página Mulher na Janela, época essa que me rendeu grandes amizades com pessoas que admiro muito. Foi uma fase muito importante da minha produção poética. Mais recentemente, as redes sociais se multiplicaram e se tornaram um espaço emblemático para diálogos entre artistas de todo o Brasil, especialmente no período pandêmico. Como teríamos acesso direto a artistas que estão a milhares de quilômetros de distância? Como perceber, se não por esses contatos, que muito do que vivo de realidade em minha cidade do interior, também é objeto vivo e pulsante de poesia para outros artistas, de outros interiores desse Brasil profundo? As redes sociais promovem tudo isso, o que nos instiga cada vez mais a compartilhar nossos escritos através desses meios, pois o que seria da arte sem seu público? É inegável esse pacto proporcionado pela internet, alimentamo-nos dele e fortalecemos nossa rede de afetos e lirismos.

Quais seus próximos projetos literários?

No que se refere à poesia, que é a minha produção habitual, não tenho planos no momento, embora ela sempre esteja aqui, me rondando com suas saias quilométricas e coloridas, pronta para me vestir ou me devastar. Há alguns meses, venho instigada por um projeto de romance que está me tirando o sono e a poeira dos desejos antigos: me dedicar a narrar histórias, algo que, mesmo já tendo me aventurado muito timidamente, não é um ambiente em que me sinta totalmente confortável, como é o caso da poesia. O saudoso amigo Bartolomeu Correia de Melo, contista potiguar de primeira e que me deu a honra de fazer leituras críticas de algumas narrativas minhas, me disse há cerca de 15 anos: “na poesia, você está madura; na prosa, eu diria que você está ‘de vez’”. Sou consciente do caminho que ainda devo percorrer nesta área. A literatura que eu gosto de fazer parte de uma inventividade fluida e, ao mesmo tempo, comprometida com uma linguagem que possa aglutinar rigor e paixão. Por isso, venho me dedicando a pesquisas sobre o contexto social em que se passará a narrativa e sobre a construção do romance em si, lendo e relendo autores de quem sou admiradora, como Gabriel Garcia Márquez, Graciliano Ramos, José Saramago, Virgínia Woolf, e vários outros que estão na lista de espera por mim. Meus planos é que o livro seja publicado no próximo ano. Espero, até lá, sentir-me uma fruta “de vez” despontando para ser apreciada por quem me leia, em uma desejada maturidade que só o tempo, o trabalho dedicado à escrita e o pacto com o leitor, poderão dizer se chegou.