Poeta Jean Sartief fala sobre livros, inspirações e sua próxima obra sobre Lourival Açucena

Reportagens

Jean Sartief: "Entender qual sua voz neste universo deve ser um princípio para qualquer poeta"

Vivendo em Portugal há alguns anos, poeta natalense diz a literatura brasileira é lida e dá referência a muitos leitores e autores portugueses

17 de setembro de 2023

Cefas Carvalho

Potiguar nascido em Natal, "do signo de gêmeos com ascendente em gêmeos", segundo suas palavras, Jean Sartief  é graduado em administração e em comunicação social com mestrado em antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Irrequieto e premiado poeta e artista visual Jean atualmente vive na cidade do Porto, em Portugal. Na Lusitânia, participou da coletânea DiVersos - Poesia e Tradução e de jornais e revistas literárias e uma coprodução Brasil-Portugal. Tem seis publicações poéticas individuais e participação em diversas revistas e coletâneas. Publicou livros elogiados como "Entre o Sol e a Lua", "Eclipse" e "Na boca das tuas palavras". Atualmente escreve um livro sobre a vida do nosso primeiro poeta potiguar, Lourival Açucena e ainda prepara-se para lançar novos livros de poesia.

Seu primeiro livro de poesias publicado data de 1997, o elogiado "Entre o Sol e a Lua". Passados 26 anos, como avalia este livro e que lembranças  tem dele?

Não tinha me dado-me conta que já comemorei 26 anos do meu primeiro livro! Eu estava na universidade. Escrevia bastante desde a adolescência e queria muito publicar. Nas noites da rua Chile ia sempre com minhas poesias impressas e ilustradas com desenhos ou colagens que fazia e saia distribuindo para as pessoas. Sempre fui um ser inquieto e a poesia me abriu mundos desde sempre. Juntei dinheiro e banquei a publicação que saiu pelas prensas da Fundação José Augusto. O lançamento foi no Solar Bela Vista numa noite agradável com uma breve chuva. Cuidei de cada detalhe, corri atrás de tudo. Lembro que correspondia-me (por cartas) com a mãe do cientista Miguel Nicolelis, Giselda Laporta Nicolelis, escritora infanto-juvenil que permeou minha infância e que tenho sempre no coração. As cartas eram maravilhosas e na verdade foram seus livros que me tocaram o desejo de escrever. Por causa dessa correspondência ela colocou meu nome (Jean) como personagem de um de seus livros. Ela disse-me que a chuva era sinal de sorte e foi dela que recebi o meu primeiro conselho: lapidar o texto, cortar, cortar, cortar...

Devo ter vendido uns 50 a 80 livros naquela noite. Foram amigos e família. Deixei os livros em todas as livrarias que existiam na cidade à época. No dia seguinte, sai também de porta em porta oferecendo meu livro... Carregava a mochila cheia deles e vendia a quem encontrava pela frente com um brilho nos olhos.

 

Agradeço o “elogiado”, mas acho que era um livro de um jovem com muitos sonhos e que ainda não havia mergulhado suficientemente no mundo da poesia, da literatura. Em certo sentido, um livro imaturo, mas por outro lado, ele trouxe um frescor inocente do meu tempo. Muitas das poesias eram sonetos e havia um toque ingênuo e intimista, mas acho que faltava um maior trabalho na síntese, na forma, conteúdo e na clareza que fui buscando ao longo do tempo e que ainda procuro hoje. Eu ainda não havia assumido minha sexualidade e acho que as poesias discorrem muito sobre esse encontrar-se. 

Você foi o vencedor do primeiro Concurso de Poesias Zila Mamede, promovido pelo Potiguar Notícias, em 2004. Como foi esse processo e qual sua opinião sobre concursos literários?

O Concurso de Poesias Zila Mamede foi uma das maiores alegrias que tive e sinto-me honrado. Lembro que soube na última semana, nos últimos dias de inscrição e corri para dar tempo de inscrever-me. Quase não acreditei. Foi o meu primeiro concurso e a importância foi imensa no meu percurso por ter sido um olhar de fora – de avaliação – para a minha escrita e isso ecoou internamente até com um peso de responsabilidade. Lembro de ter sido a primeira entrevista que dei e foi o próprio Cefas que foi em minha casa na Rua Régulo Tinôco entrevistar-me. Lembro nitidamente desse dia.

 Acho os concursos literários importantes e necessários e que sempre dão projeção ao autor, mas não são tudo. Muitos deles operam numa lógica institucional, mas continuam sendo uma possibilidade, um canal para que os escritores e poetas tenham a sua obra literária ou também do ponto de vista visual ou gráfico agraciados. Independente do resultado, há um alcance não medido do texto ou da poesia em outras mãos. Sem falar que é sempre um estímulo para publicação porque muitos dos prêmios envolvem ampla divulgação e alguns, a impressão de livros e com isso uma ampliação do público leitor. Claro que também existem os que são sérios e muitas fraudes no meio. É preciso estar atento, buscar aqueles com regulamentos coerentes, com juris especializados e boas propostas ao autor. Sinto falta dos vários prêmios de literatura que haviam em Natal.

Existe também o fato que nenhum concurso literário dá conta de toda a produção, então eles são importantes mas ninguém pode sentir-se restrito por não alcançar uma premiação literária. Muitas vezes o conjunto da produção literária ao longo do tempo diz mais e com tal vigor sobre o autor e sua obra. O importante é nunca parar de escrever.

 

Atualmente você mora na cidade do Porto, em Portugal. Como essa migração impactou sua forma de ver a vida e o mundo e consequentemente sua produção poética?

Quando eu mudei-me para São Paulo (2014-2019), mais que qualquer outra cidade no Brasil das quais estive ou vivi, eu percebi uma mudança na minha escrita e foi exatamente esse deslocamento de sentidos, percepções, cultura, sonoridades, ritmos, vivências e acessos a outros escritores, poetas, encontros e por aí vai, que possibilita essa ebulição interna e externa. Sair do país em plena eleição do genocida foi também um ato político, mas que vinha sendo desejado já há algum tempo. Ele foi um catalisador porque cedo ou tarde isso iria acontecer. Chegamos na cidade do Porto sem nunca termos posto os pés anteriormente, mas com muito planejamento (essa possibilidade que os meios digitais propiciam) mergulhamos fundo nessa operação tecnológica disponível antes de nos aventurarmos. Da mesma forma, tudo foi novo como em São Paulo. É uma explosão para os sentidos... o norte do país, os sotaques, a cultura, a arquitetura, os sabores, os gestos, o Douro, a cidade baixa, a ribeira...e o isolamento e solidão também. Faltavam os amigos de uma vida. Passamos (Felipe e eu) a pandemia aqui. Nesse sentido, a vida se reestrutura todos os dias. Aqui temos contato mais próximo com realidades e questões que muitas vezes nos são distantes no Brasil ao mesmo tempo que vemos questões que já estamos avançados há tempos e outras que são novas, como a xenofobia. Essa ruptura de sentido que acontece na vida – e que não necessariamente precisam passar por uma imigração – levanta camadas, traz esse novo olhar para o interno e o externo. O fato de lidarmos com o percurso da palavra, esse bem tão precioso, também é impactado. Sinto minha escrita muito mais amadurecida. É esse viver a vida que intensifica a arte.

 

Em 2001 você publicou "Eclipse" e em 2005, a terceira obra, "Na boca das tuas palavras", assumindo uma literatura cada vez mais pessoal e dentro do universo homoafetivo. Como observa hoje esses dois livros?

Diria que esse período foi de afirmação de minha identidade sexual e também político-literário porque passa pela receptividade e ocupação do espaço hetero-machista-literário no Brasil. Os gays, as mulheres, os negros, os indígenas sempre foram colocados como dentro de uma marginalização, enquadrados como uma literatura menor e por isso sempre vi essa necessidade (que ainda hoje existe)  de ocupar esse espaço e ter essa temática em causa, entretanto interessa-me também a busca por uma fluidez e multiplicidade do que regulamentar-me por uma escrita homoafetiva ou homoerótica.  Eu escrevo sobre sentimentos que me habitam e do que se desdobra...sobre um olhar para o mundo...e isto está acima de qualquer enquadramento literário.

Na boca das tuas palavras foi escrito após um término de um relacionamento e por isso  a opção também de uma estética de ruptura com uma leitura linear... o livro inteiro fala sobre rupturas e é diagramado desta forma. Tenho histórias incríveis sobre o alcance desse livro e uma delas é de um casal que reconciliou-se através de poesias desse livro...ele enviava para ela e vice-versa... e assim foram se reconectando... e estão juntos até hoje. Esta dimensão maior do sentimento é o que me atrai.

É preciso que todos os universos literários tenham vazão de publicação e leitura, porque isso nos torna mais enriquecidos como povo e cultura, mas é preciso que também haja canais de distribuição, de debates, encontros. Recentemente (2022) pude participar, através de Rita Machado, grande artista potiguar, do Cirandar, projeto lindo que englobou curtas, uma revista e uma feira literária só de poetas e seus livros. A diversidade da feira foi maravilhosa. Poetas indígenas, gays, lésbicas, coletivos de mulheres, negros, poetas consagrados e iniciantes, de todos os estilos, gêneros e vertentes literárias com espaço e voz para suas obras e poesias.

           

Em 2010, você publicou o excelente "O mar sou eu", que foi menção honrosa no Prêmio Otoniel Menezes de poesia. Como foi esse processo?

Vejo com O mar sou eu um olhar expandido para além das minhas fronteiras. Já o considero dentro de uma perspectiva de ir do umbilical à sua ruptura e também o livro mais visual. Já foi chamado de um livro poesia-objeto. Com tiragem limitada e quase artesanal onde cada exemplar teve interferências visuais. Nele, dei-me liberdade de trazer um olhar das artes visuais para a poesia e vice-versa, áreas que me são fundamentais. Também era uma proposição para uma nova forma de ler unindo elementos tridimensionais dentro do livro – e assim expressando-me um pouco além da parte gráfica, mas toda essa parte veio depois do Prêmio Othoniel Menezes na qual apenas a parte textual foi analisada. A concepção visual do livro que criei veio depois. Foi também o livro que mais tive feedback dos leitores e foi de norte a sul do país. Até hoje isso acontece e é muito gratificante.

 

 

O seu "Jardim dos Abismos", lançado on line em 2020 está em pré-venda como livro físico pela Opera Editorial (SP) e será lançado na Flip. Como está vendo isso? 

Jardim dos Abismos é um livro visceral. Nasceu entre a vida (o jardim) e a morte (depressão). Comecei a escrevê-lo em 2018. Meu olhar é para o cotidiano e o mundo sempre buscando uma esperança em acreditar que somos (ou seremos) seres melhores em meio a tantas tragédias. Acho que em Jardim dos Abismos parto do intimista e trago para o universal. Aponto para uma desconstrução de mim mesmo, processo que perdura desde então. O livro é uma tentativa de articular na escrita o que se impõe no turbilhão de sentimentos de quem vive às voltas com a depressão, assunto seríssimo e que toca milhões de pessoas.

Jardim dos Abismos já nasce com uma fortuna crítica feliz. Foi bem comentado quando nasceu como e-book. Teve poesias musicadas pela parceria linda com Luiz Gadelha e agora chega na versão impressa pela Ópera Editorial e ainda vai participar da FLIP, Feira Literária Internacional de Paraty. Estou feliz com ele porque também é um livro muito catártico num processo de ressignificar silêncios, feridas e ilusões. O nome veio desse processo literal e complexo de criar um jardim em meio a essa intensa depressão. Todo o livro é permeado de elementos relacionados ao jardim. Essa versão impressa tive a honra e o luxo de ter Marize Castro (prefácio) e Pedro Fernandes (orelha).

Pouca gente sabe, mas Marize foi meu primeiro contato de proximidade com uma poeta da cidade que já na altura era respeitada. Eu escrevia muita poesia, mas guardava para mim...Não conhecia esse território de poetas e escritores da cidade. Na altura eu cursava administração na UFRN e queria escrever minha dissertação sobre Marketing Cultural. Falar sobre essa temática era novidade. Quase não havia bibliografia. Corri para a Capitania das Artes querendo estagiar lá... (e a instituição nunca havia tido um estagiário). Naquele tempo era Marize Castro que estava encarregada da gestão cultural e eu chegava lá todos os dias. Acho que venci pelo cansaço... Rejane Cardoso era dirigente­|gestora da Capitania. Lembro de Marize em um conversível de época vermelho e eu sempre todo bobo a admirá-la! Era uma turma muito boa e envolvida com o fazer artístico e cultural. Olha só isso, tive essa alegria de ter sido o primeiro estagiário do setor cultural na Capitania das Artes com Marize Castro. Foi um intenso aprendizado. Em seguida, cursei jornalismo.

O Pedro Fernandes eu conheci recentemente, há alguns anos por uma publicação. Ele é professor universitário e dedica-se aos complexos estudos da obra de Saramago pela Revista de Estudos Saramaguianos e pela revista 7Faces do qual é diretor e pela qual também fui publicado e foi uma imensa alegria ele ter aceito o convite para essa síntese do Jardim dos Abismos.

 

Como poeta, qual sua opinião sobre redes sociais? Mais ajuda ou mais atrapalha quem escreve literatura?

Tanto ajuda como atrapalha. As redes sociais, como a internet como um todo, trouxeram um florescimento literário em diferentes plataformas e minimizaram tempos de invisibilidade e silenciamento, diminuíram distâncias e em certa medida facilitam a publicação. São um amplo canal de divulgação e acesso a outros autores e obras, contudo há também muito ruído e cópias. Há muita gente que copia o estilo de determinado poeta porque o admira, mas não é o melhor caminho para construir a própria identidade literária. Isso acontece com qualquer área, vejo o mesmo nas artes visuais, na música etc. O fazer artístico é uma prática que envolve muitas habilidades, compromisso e responsabilidade. Entender qual a sua voz neste universo deve ser um princípio para qualquer poeta ou escritor e isso faz-se com o tempo e com um olhar atento para si, para os seus e para o mundo. Quando escrevo procuro distanciar-me das redes sociais. É uma imersão solitária que permeia essa identidade do que eu tenho a dizer e o fundamental trabalho de ler, reler e lapidar...

 

Como um morador do Porto acredita que portugueses leem o que brasileiros escrevem? Como vê, se é que existe, o intercâmbio cultural entre escritores lusitanos e brasileiros?

Sim, os portugueses leem os brasileiros desde sempre. Lembro que logo quando chegamos, em 2019, fomos a um sarau de poetas portugueses e havia muita referência a escritores brasileiros de outros tempos e dos contemporâneos. Recentemente fui a uma leitura pública da obra de Clarice Lispector e é relativamente fácil encontrar publicações brasileiras. Conversando com poetas portugueses sempre há muita citação a poetas brasileiros também.

Tanto se deve a editoras portuguesas atentas a nossa produção como a editoras brasileiras que atuam por cá e também pela comunidade brasileira em Portugal. Portugal conhece mais sobre o Brasil do que o contrário. Encontrei aqui escritores, poetas, artistas fantásticos que desconhecia quando estava no Brasil e esse relato é sempre comum em outros brasileiros. Nesse sentido, penso que ainda há um desafio onde o intercâmbio cultural ainda precisa ser melhor trabalhado.

Outra ação que tenho me dedicado é encontrar publicações de autores brasileiros em Portugal. Tem sido um passatempo prazeroso. Ano passado, encontrei em uma publicação portuguesa, a nossa Zila Mamede! Tratava-se de uma coletânea publicada em Lisboa, intitulada: A nova poesia brasileira (1960). Recentemente encontrei Trinta “Estórias” Brasileiras, de Câmara Cascudo (1955) pela Editora Portuense. Além destes, já encontrei edições originais de Adalgisa Nery e Manuel Bandeira além de inúmeros outros autores brasileiros em prosa.

 

Quais seus próximos projetos? O que planeja literariemente para 2024?

Em 2021, lancei com Rita Machado, o livro EntreRios. Foi um lançamento simultâneo Brasil-Portugal e propomos um diálogo poético-imagético entre o rio Potengi e o rio Douro. Foi lindo! Poesias e fotografias sobre estes rios. Estamos articulando novos projetos para os próximos anos.

Posso adiantar que de 2023 para 2025 vem a publicação de três livros novos. Dois livros de poesia e um livro sobre Lourival Açucena, nosso primeiro bardo potiguar. Há dados novos que venho acrescentar na biografia do poeta. Muitas descobertas interessantes! Os dois livros de poesias foram escritos inteiramente aqui no Porto. E esse ano ainda vou participar de uma coletânea de poetas de língua portuguesa.